Cantinho do pensamento

É logo ali, bem aqui e agora. É sempre circular. Virando à direita, chegando na próxima à esquerda, subindo uma ladeira, depois descendo num barranco, passando por um beco e por um pátio, seguindo por uma alameda suspensa, após o primeiro mourão da cerca e uma baraúna encravada no solo centenário, chega-se ao endereço. No meu cantinho do pensamento, descubro as minhas cavernas pulmonares. Respiro. Respiro. No meu cantinho do pensamento, não há castigo, mas ideias. No meu cantinho do pensamento, não há silêncio, somente. Há uma sequência de silêncios. Silêncios com os grilos, os mosquitos, os pássaros noturnos, os bacuraus do Norte ou os urutaus do Sul.

No meu cantinho do pensamento, há um silêncio rompido pela televisão ou pelo rádio ou pela internet ou pelo celular. Por favor, não invadam de graça o meu cantinho. Paguem na bilheteria, com sorrisos ou outros pensares. Pois, sim. Pois no meu cantinho do pensamento, não há só pensamento. Há um sanduíche de pensamentos, que são vendidos na esquina dos próprios pensamentos. No meu cantinho do pensamento, não há propriamente saudade ou lembrança. Há um mundo de memórias, afagos e naufrágios. No meu cantinho do pensamento, sento num banquinho e toco violão, buscando no silêncio a partitura perfeita e a plateia esperada. Respiro. Bocejo. Posso até tossir, pigarrear, engasgar com o mesmo conluio de pensamentos.

No meu cantinho, há Clarice e Clementina, há Gioconda e Madonna. Há Sócrates e Platão, mas há também Biliu e Jacinto. Cheiro de malassada de frigideira. No meu cantinho do pensamento, há lajedos das Melancias, mas há também, por uma fresta e outra, as estátuas da Ilha de Páscoa. Escuto o pensamento bater à porta, dizendo para pensar ainda mais, que não me quebra ou não me dói pensar mais um pouco.

No meu cantinho do pensamento, vem um dia ensolarado, mas também a noite escura: os dois se revezam no cenário dos pedidos. No meu cantinho do pensamento, sou pidona: peço, invoco, mentalizo, oro, rezo. Não sei se faço certo, mas continuo achando que pensar é bom. No meu cantinho, escuto Ivânia, mas também Cristina. No meu cantinho, escuto Lima, mas também Moura. Também escuto Oliveira, Ramos, Quirino, Costa e Félix.

No meu cantinho do pensamento, sinto as dobras do intestino. Respiro. Inspiro. Expiro. No meu cantinho do pensamento, fico saciada e faminta, fico ávida e tranquila. E quando um pensamento nefasto quer entrar pelo ouvido, respiro bem forte. Não o combato. Nem sei se eu teria tantas armas. Analiso o quadro. Deixo a coisa se desintegrar. Aí, vai se esfarelando no vento. Carrega-se até o outro continente. E segue não sei para onde. Pois é. No cantinho do pensamento, há quem diga que isso é meditação. Tudo bem. Vamos lá. No cantinho do pensamento, trabalho para nem ter pensamento. Eis o ponto. Procuro fazer com que não haja pensamento, música, barulho, imagem, oração.

Num cantinho de pensamento que se preze, o ideal mesmo é o nada. Nada vezes nada. Uma porta para entrar a limpeza eficaz, com bucha leve e sabão cotidiano. Para a chave girar e abrir. Para construir as estradas dos quereres, para destravar as gavetas dos desejos, para desinfetar os milhões de planos, para desobstruir os sentimentos. Para ser. Principalmente: para elevar.

No cantinho do pensamento, há um turbilhão de motivos para não pensar. Tem gente pensando que é fácil. Vêm, de banda, exércitos desconhecidos para que não haja cantinho, para que não haja pensamento ou verbo algum. Vêm, de sopro, agressões visuais ou olfativas ou auditivas, numa afronta ao meu cantinho. Respiro. Respiro. Deixem meu mundo, eu sussurro, se preciso. Saiam daí, da minha corrente sanguínea, berro com o olhar. Deixem em paz meu cantinho, eu falo com a mente. Não agridam os cantinhos alheios, imploro. Daí não sei se é a mente ou o pensamento. Agora me embolei. Não sei se é corpo ou alma. E se for alma, alma mesmo, da melhor qualidade, aquela brilhando, é assunto, sim, com certeza, para outra crônica.

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