Velas cercadas de papelão vagabundo

Desde pequena, a laranja é minha fruta preferida. Gosto das azedas. Eu deveria falar da reforma tributária, da transposição das águas do Velho Chico – assunto interminável, mas vou falar da laranja. O melhor é descascá-la e ficar vendo aquela parte branca: o prenúncio dos diálogos.

– “A treze de maio, na cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria…”, cantava a menininha, com os olhos arregalados. Numa mão, levava a laranja, na outra, a vela cercada de um papelão vagabundo, como a maioria dos papelões que cercam as velas. Antes que vocês pensem que a menininha era eu, vou dizendo logo que não. É apenas uma doce personagem que imergiu nesse texto. Talvez ela exista para que eu fale das laranjas ou da velas. De Maria, falo depois, porque ela merece uma crônica inteira.

Vamos às laranjas. Não vou dizer que é bom chupá-las com sal. Minha mãe não ia gostar. Vou dizer que, um dia, ao descascar uma laranja, carreguei-a com a mesma intensidade da menininha. E eu, na minha repentina falta de ingenuidade, segurava, na outra mão, uma faca amolada, brilhosa e dentuça. Não era uma simples vela: aquele objeto de parafina exalando luz e fumaça não estava nos meus planos. Laranjas e velas não combinam. Eu segurava uma faca que foi descerrando a coitadinha da laranja, aos poucos. A parte verde, sinuosa, foi morrendo. Mas descasquei com uma voracidade invisível. Tive a sensação de mundo se acabando, de ultimato. Parecia que eu nunca mais ia conseguir fazer aquilo de novo. Não cheguei a chorar por isso. Eu estava tão crua e azeda quanto a laranja. Aquele ofício de vitamina cê me causava o vazio de uma morte anunciada, uma morte em vida, de desafios perenes. Nãos e sins que pronunciamos com bocas e peitos lavados. Dom Pedro disse sim, quando quis ficar. O resultado foi uma morte exígua e mascarada: colonização contínua. Quem somos, mesmo? A bruxa malvada da estorinha deveria ter dado à Branca-de-neve uma laranja como essa: propulsora de diálogos. É preciso chupar laranjas assim. Corram à feira, agora. Mas não queiram mimos-do-céu. São exclusivamente de crianças. Não, isso não é coisa de anarquista, mas de pluripartidarista. Trocar de partido é bom e saudável como uma laranja. Taí Burity, que não me deixa mentir e ainda me faz rimar. Como se não bastasse, não resisti ao ver a sementinha. Gente, encontrei uma única sementinha. Era aquela coisinha gorda, mas miúda, com duas saliências. Tinha também uns riscos brancos, quase imperceptíveis e uma cor que não está nos livros, nos discos e nem nas bisnagas de tinta dos pintores: cor-de-um nada misterioso.

Não sei, acho que essa laranja pediu para ser escrita, assim como a menininha. Personagens e situações são assim: pedem para viver nas palavras. E se não dermos vida a eles, tudo recomeça ou se acaba num túnel de tristezas mal-aproveitadas. E até esse mal- aproveitamento de tristezas também merece ser escrito, mas contado numa outra laranja.

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