Uma voz que se calou

ROSILDA CARTAXO

Minha Cajazeiras, cadê Íracles? Onde anda aquela mulher maravilhosa? Por que a sua voz calou-se nas quebradas do sertão, quando numa espécie de mascate vendia notícias? Há em todo lugar um silêncio que magoa. Por que sumiu de tua paisagem aquela figura esguia, altiva, de olhos castanhos, levando sempre n’alma a intranquilidade dos que não podiam viver só?

Tua resposta será a mais dolorosa. Dizer à Paraíba que Ica morreu é dizer que na tua história, uma voz calou-se. É dizer que a poesia saiu dos salões e auditórios festivos. A “Nega Fulô” está de luto. O silêncio exigido nas declamações agora tornou-se maior porque sua própria voz se calou.

O teatro fechou o pano de fundo e foi para a praça pública para assistir à mais emocionante das peças, a morte da líder. O diálogo com a juventude foi cortado, pois era uma constante em sua vida, diálogo gerador de energia e força de adesão. Baniram de sua vida os conflitos de gerações.

Ica precisava de gente e acreditava no mundo em que vivia. Não era dominadora, tudo era na base da amizade, onde não havia sombra da posse. Não foi feminista. Foi mulher participando da luta por um mundo melhor. Sua vida era alegria contagiante, seu riso era franco, porque sabia Ica que o riso também tinha feitio social.

As galerias estão fechadas, e a voz que se levantava para a promoção dos artistas calou-se. Ica trazia nas veias o sangue do grande artista brasileiro, que era seu avô Modesto Brocos.  Nos grupos sociais da comunicação, há agora uma cadeira vazia. Ica se foi e calou-se no grande silêncio da morte.

As lideranças políticas estão em silêncio, porque a voz de Ica era traço de união entre líderes do povo. Quem falará por ele, agora? Os fracos oprimidos choram a sua partida. Ica saiu de si para doar-se aos mais necessitados.

Era autêntica. Sua humildade não tinha máscara nem disfarce. Foi imutável do começo ao fim. Vinda de família patriarcal, jamais ajustou-se às formas convencionais ou pré-estabelecidas. Tinha consciência da sua própria dimensão.

A criança inocente ainda não sabe que ela, no Ano I da Criança Brasileira, virou, mexeu com todos os poderes públicos para a criação do Hospital Infantil, na certeza de que a criança pobre também tinha o direito a ser assistida. Ica era uma preocupada com o destino de todos.  Ica não gostava das estradas feitas, gostava de criar realidades com esforço próprio. Íracles foi coragem, foi otimismo, foi lutadora por causas fortes.

Tudo agora calou-se ao seu redor. Como compreender tamanho silêncio? Ah, minha Cajazeiras, a voz de Ica era a tua voz. Calou-se, dela agora só a saudade ficou. Por uma porta aberta, ela projetou-se no grande lar da eternidade. Ela que sempre parecia pisar as planícies, foi a morte surpreendê-la numa curva. Terrível realidade.

Minha Cajazeiras, choro contigo.

ROSILDA CARTAXO FOI EDUCADORA, PESQUISADORA DA CULTURA POPULAR, ESCRITORA E HISTORIADORA

CORREIO DAS ARTES – ANO LXIV – Nº 7 – SETEMBRO/2013

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