A minha rua

SOLIDÔNIO LACERDA

Estamos vivendo as primeiras horas do ano 2000, que já nos pareceu tão distante. Houve uma inversão do tempo. Agora, o passado é que se nos apresenta longínquo.

José Antônio fez um recuo de 110 anos para lembrar as primitivas ruas de Cajazeiras, que somavam cerca de vinte. Deliciei-me com a sua pesquisa e procurei acompanha-lo fazendo uma caminhada sentimental pelas ruas então conhecidas como Aurora, Sangradouro, Cruzeiro, Matriz, Colégio, Feira Velha, Cadeia Nova e tantas outras com denominações pitorescas. Os nomes dessas ruas foram de escolha do povo e independeram da vontade e da oficialização das autoridades, de então. Teria sido muito fácil a conservação desses nomes. A pesquisa realizada revela que atualmente temos 258 logradouros públicos, com espaço suficiente para abrigar nomes ilustres da nossa comunidade, sem prejuízo da decisão popular e das homenagens a figuras e datas da nossa história, como Vidal de Negreiros, Benjamim Constant, XV de novembro, 7 de setembro, etc. Faço coro com José Antônio, em apelo a quem de direito, para que essas ruas sejam rebatizadas com os seus nomes primitivos. Acredito que os nomes dos substitutos tenham reconhecido mérito. Mas, por outro lado, creio que foram cometidas injustiças, homenageando-se inclusive pessoas vivas. É uma forma de satisfazer a vaidade familiar ou de fazer o pagamento de favores concedidos com dinheiro público. É uma maneira de se demonstrar gratidão. Há também as omissões. Não afirmo a inexistência, porém, desconheço alguma rua com o nome de José Lira Campos ou de Raimundo Ferreira, pessoas que trabalharam e procuraram engrandecer a terra que adotaram como sua.

Com muita felicidade, José Antônio afirma que “em cada rua da cidade tinha e ainda tem menino brincando”. É verdade. Assim fui transportado para a “minha rua” que na minha infância era o meu mundo. Na minha imaginação era uma rua imensa… Era a rua XV de Novembro, no presente denominada Epifânio Sobreira. Começava na loja de Álvaro Marques e terminava na residência do Maj. Epifânio Sobreira, nos limites do açude. Descendo a rua pelo lado esquerdo, na esquina moravam João Bichara e D. Gilda, com os filhos Zé Augusto, Ivan e Jorge, que eram maiores do que eu. Uma das filhas, cujo nome não recordo, fazia aniversário no dia 29 de fevereiro.

Logo mais adiante, no lado oposto, havia a mercearia do Mestre Antônio, onde comprava 10 por um tostão, os suspiros m ais gostosos do mundo. Ao longo da vida, nunca encontrei que os fizesse, pelo menos igual. Mais abaixo, encontrava-se a casa onde nasci e passei os primeiros anos da minha infância. Em frente, o Cel. Joaquim Peba construiu 3 casas. Meu pai mudou-se para uma delas. Minha avó morava na do centro, em companhia do filho Solidônio Jácome e na última residia Juca Possidônio, proprietário de uma padaria, casado com Da. Laura Toscano. Ramiler e Joãosinho eram os seus filhos.

Prosseguindo, alcançávamos a casa de Antônio Dunga e Mariinha, pais de Adauto e Tidinha. Nos fundos da casa, havia um quarto que servia de depósito para algodão em pluma. Esse algodão nos serviu de abrigo, quando Sabino Gomes, lugar tenente de Lampião entrou em Cajazeiras. Era um amontoado de pessoas que procuravam se livrar de alguma bala perdida. Na próxima esquina morava “comadre Maria de Jesús” do Cipó, que era muito amiga e assim tratada por minha avó. Eu, criança, lhe dispensava o mesmo tratamento.

Na esquina de frente morava o alfaiate Mestre Herminio, meu amigo. No intervalo das brincadeiras ficava vendo o seu trabalho. Ele me dispensava atenção, o que não era comum, no relacionamento da época, entre adulto-criança. Anos mais tarde ele confeccionava  minhas fardas para o Colégio. Transferi-me para João Pessoa e o perdi de vista. Mais de 10 anos depois, quando conclui o meu curso, fui levar-lhe pessoalmente um convite para a minha formatura. Ele teve tão forte emoção que me fez temer pela sua saúde.

Por fim, a última casa que era do Maj. Sobreira, que todos os dias  no seu passo miúdo passava pela nossa porta. A família era numerosa e a casa era a melhor da rua. Na sala, um belo piano, que naquele tempo constituía uma raridade. O caçula era o meu amigo Heronildes Sobreira, que foi viver no Rio Grande do Sul na companhia do irmão, Dr. Alcebíades, médico na cidade de Uruguaiana. Fez carreira militar. Era Coronel do Exercito quando planejamos um encontro no Rio. Mas não deu certo.

Ás vezes, dava uma escapulida para a rua de trás (atual av. João Pessoa) para lavar os pés na água morna que vinha da caldeira do motor da luz e que diziam ter valor terapêutico para doenças da pele. A meninada fazia fila obedecendo as ordens de Simplicio, encarregado do motor. Era um programa.

Perto residia a minha professora Tarquinia, que vivia na companhia de sua progenitora, Da. Edwirgem. Minha mestra e amiga, com idade avançada, reside aqui no Rio na companhia de uma filha.

Deve ser enfadonho para o leitor, mas “sempre há um canto de saudade” na rua de cada um.

Solidônio Lacerda, médico cajazeirense residente no Rio de Janeiro

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