Pizza no terreiro

JOSIVAL PEREIRA

O presente texto tem cunho de testemunho.

Retornamos no fim de semana à região do sítio Xique-xique, 18 km ao sul de Cajazeiras, Alto Sertão do Estado, onde nascemos e moramos durante a infância e boa parte da adolescência. Morder a batata de negro, atitude que os mais velhos atribuíam ao teiú quando picado por cobra durante uma briga entre os dois. O tubérculo era o antídoto. Após encontrá-lo e mordê-lo, o teiú voltava revigorado para expulsar a peçonhenta de seu buraco nas barreiras dos rios. Temos andado por lá vez por outra para buscar energia pura. Mas fazia meses de ausência.

Visitas à zona rural no interior do Estado nos últimos anos sempre nos causa alguma surpresa, sobretudo na observação de como se vive e se sobrevive atualmente na área que era castigada brutalmente pela seca e dominada pela cultura do algodão.

Na região que temos frequentado (Xique-xique, Cachoeirinha, etc.), em Cajazeiras, registramos, nos últimos anos, a presença de muitas pequenas vendas, bares e restaurantes estruturados; arenas de futebol, com campos gramados e iluminação para atividades à noite, como ocorre nas cidades, e a realização de muitos eventos, como cavalgadas e forrós.

No sítio Cachoeira há uma profusão de sanfoneiros e metade dos presentes em qualquer forró toca zabumba e triângulo. São quase todos artistas.

Existe vida nova na zona rural. Todos os sítios já dispõem do serviço de energia elétrica. São visíveis casas grandes, modernas e confortáveis, com caminhonetes (assim, no plural, porque, muitas vezes, tem mais de uma) nas largas varandas. São equipamentos de trabalho dos vendedores, que passam três ou quatro meses no meio do mundo vendendo confecções.

Eis uma boa fonte de renda que alimenta a economia do campo no Sertão. Os vendedores sempre amealham razoáveis lucros e investem na construção de boas casas e no pequeno comércio na própria localidade. Os filhos já estudam na cidade e têm outro nível de instrução.

Some-se a isso os valores das aposentadorias, dos programas sociais e de remessas de parentes que estão trabalhando em outros Estados que oferecem mais oportunidades de trabalho. Existe, portanto, um bom volume de recursos fazendo girar a economia local.

Todos os mais novos têm uma moto. Muitos têm carros para o trabalho. Praticamente todas as casas dispõem de aparelhos de televisão e geladeiras, entre outros utensílios, que ninguém da zona rural local sonhava há 40 anos.

Um forró, depois de uma cavalgada no último domingo, revelou a presença maciça de jovens. Algumas dezenas. Não estão indo mais para São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília ou para os Estados do Norte, como antigamente. Não ficava um. Não querem mais nem morar na cidade mais próxima. A vida no campo basta. Podem estudar na cidade pela facilidade de transporte, acompanhar o mundo pelas redes sociais, vestir conforme a moda geral e conviver com pais.

A vida é profundamente diferente daquela que se levava até a década de 1970, pautada pela economia do algodão, implantada na região desde o século XVIII, para atender a demanda inglesa, vivendo o esplendor da Revolução Industrial. Menos nos anos de seca, os donos de terra tinham renda garantida e os trabalhadores, apesar da exploração, conseguiam sobreviver de forma sofrida. Registramos essa realidade no alpendre lá de casa, com os trabalhadores chegando no fim da tarde com trouxas de lençóis cheios de algodão na cabeça para pesar e anotar na caderneta de nosso pai. Metade para o dono da terra e metade para o trabalhador, que deixava o algodão para pagar a conta do dinheiro que já tinha tomado emprestado antes.

Muito diferente das fotos que se via nas paredes das casas na zona rural nas décadas de 1980 e 1990, depois que a praga do bicudo dizimou a cultura do algodão. Dois terços das figuras do retrato da família estavam trabalhando longe. O caos estava instalado no Nordeste, ninguém sabia o que fazer sem a cultura do algodão. Nem os técnicos, economistas e dirigentes políticos. Até os donos de terras foram à falência. Imagina o trabalhador.

Apesar dos muitos estudos, seminários e recursos alocados para se encontrar caminhos para substituir a cultura do algodão, não se foi capaz de organizar e estruturar um modelo econômico para a zona de semiárido. A própria necessidade e as mudanças no mundo impuseram o caminhar. Vieram a nova Constituição e os programas sociais, recursos constitucionais, disseminação da educação e, com mais informações e instruções, os sertanejos com menos de 50 anos construíram saídas para viver de outro jeito no Sertão.

Há uma nova economia. Além das pequenas vendas, bares, restaurantes, arenas de futebol e eventos de forró, registramos cenas anteriormente inimagináveis na zona rural do semiárido. Em frente a uma casa de forró havia um carro servindo hambúrguer e um carrinho de crepe francês. Encontramos um homem que sobrevive vendendo salgadinhos nas escolas da zona rural. Nas estradinhas esburacadas pelas chuvas, encontramos mulheres com roupas de ginástica igual ao que ocorre nas cidades. Caminhavam para o treino numa academia. Nos deparamos com uma pizzaria, quase no meio do mato. A pizzaiola revelou que não estava atendendo a demanda. Por estar chovendo muito, o delivery era o serviço mais acionado, embora ainda fosse muitos os que preferiam saborear uma pizza ali no terreiro.

Interessante registrar aqui uma fala da cientista social Tânia Bacelar, estudiosa do desenvolvimento regional, por ocasião da entrega do merecido título de cidadania a ela, na Assembleia da Paraíba, na última sexta-feira. Tânia observou que o modelo de ensino superior instalado no Nordeste a partir da experiência implantada pelo professor Linaldo Cavalcanti na Paraíba, com a interiorização de centros universitários, estava provocando ou iria provocar uma revolução silenciosa no Nordeste. Pediria licença para registrar que a alfabetização e a disseminação do ensino nas últimas três décadas, assim como a chegada do ensino superior no interior, talvez aliada às ações de governos mais comprometidos com o social, já provocaram grandes mudanças na qualidade de vida nas regiões mais pobres do Nordeste. Mas, registre-se, que o novo semiárido é fruto da bravura do próprio sertanejo para sobreviver.

JOSIVAL PEREIRA É JORNALISTA

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