Palito

O entrevistado mirou nos meus olhos por dois segundos e perguntou se a conversa demoraria muito. Proporcional ao tamanho das respostas, falei. Certo. Concordou. Fez questão de enfatizar que era amigo do proprietário do jornal. Pronto. Eu sabia que ali estava mais um personagem inesquecível, apesar de estranho, bronco e escorregadio. Garanto que minha missão não era invencionice do editor.

Boa tarde. Licença. Sim. Grata. Vim cumprir uma pauta. Pois é, o tema está em todas as redes. O senhor é acusado como parte do acontecido. Consideramos que a sociedade merece uma explicação. Quem é você, garota? Era a pergunta escrita naquela testa avermelhada, durante toda a entrevista. O cheiro forte da sala, algo parecido com esmalte sintético, também me obrigava a cumprir a tarefa com o máximo de concentração, o mais breve possível.

Meu estômago remexia os embrulhos. Ainda estou pra entender como aquele homem dominava de forma tranquila, com muita destreza mesmo, a ação grotesca de falar apressadamente, mas com um palito na boca. Os pelos desalinhados do bigode entravam nessa façanha. Rápido. Rápido. Embolava o pequeno objeto na língua, e ia falando, tossindo, rindo, mastigando. Talvez quisesse me desconcentrar.

Meu grau de evolução espiritual precisa de mais uma revisão. Urgente. Preciso melhorar. Julguei o cidadão, bem ligeirinho, em poucos parágrafos. Em qualquer texto opinativo, podemos observar, há um julgamento embutido. Não estou convicta se isso é grave, mais ou menos grave ou gravíssimo. Relembro as cenas e me coloco assim, como estou fazendo, mas sem citar nomes, apenas alguns ocorridos da história. Como se aqui estivesse o resumo do resumo.

De cena em cena, o quadro era contornado. Numa poltrona giratória, estava aquele indivíduo pensativo e denunciado até o telhado, mas dizendo não, não e não. Conhecemos o roteiro. Aquela coisa: sempre respostas negativas, culpa de nada, tramoia dos inimigos, má interpretação, armadilha dos opositores. Não sabe, não viu, não conhece. Não, nunca, jamais, advérbios que brotavam das paredes.

Lidar com político denunciado é um exercício tenso e, da mesma forma, patético. Há tipos para todos os olhares. Há o tipo que prepara um espetáculo, e quer que qualquer figurino se encaixe. Há outro tipo, que arrasta toneladas de argumentação, pensando que somos tolos. Há outro tipo, que dorme, dorme, só dorme. A lista é longa.

Com esse comportamento misterioso, meu interlocutor rendeu uma matéria. Contei o que ouvi. Entre um não e outro, frases esparsas. Frases diluídas no café. Frases desmanchadas nas nuvens. Aquelas frases que voavam, quase sem nexo, e, num determinado momento, grudavam nos meus ouvidos. Aquelas frases que pareciam não falar, mas falavam. E como falavam. Foi nesse clima que montei o produto, do jeito que se apresentou, pois repórter não pode voltar à redação de mãos abanando. É claro que não mencionei o palito. Olha, mas deu vontade.

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