A Cajazeiras dos tempos do Carcará: ficção e realidade

A leitura do romance Carcarános conduz a tempos idos e vividos que a nossa memória não nos permite esquecê-los. Assim é que a leitura de uma obra de reconhecido valor nacional, literária e esteticamente falando, mesmo em se tratando de um relato ficcional, vai promovendo uma simbiose entre a ficção e a realidade. Não nos é possível, portanto, definir até onde se encerra uma e começa a outra. Mas, seguramente, sabe-se que, por ali, vão desfilando personagens e ambientes deveras familiares aos que viveram à época dos acontecimentos narrados, mas também dos que, ainda hoje, estão a circular pelos lugarejos, ruas, praças e avenidas de nossa urbe.

É como se, fechando nos olhos, estivéssemos a contemplar a Cajazeiras doutrora. Assim, é-nos possível rever, por meio de imagens que o nosso subconsciente conserva, andanças prazerosas por vias inesquecíveis.

O centro de nossa cidade continua sendo onde sempre foi. E foi, claro, pelo centro da cidade que o bando de Sabino Gomes planejou saquear Cajazeiras, trazendo pânico aos habitantes citadinos, no ano de 1926.

Ao adentrarem a cidade, vindos das bandas do Ceará, iniciaram a ação nefasta pela antiga Rua da Matança, onde hoje se situa a Engenheiro Coelho Sobrinho (Rua Dr. Coelho), bifurcando a trajetória criminosa: indecisos, uns rumaram pelos caminhos da Rodagem, de onde desceram pelo oitão do Cemitério, enquanto outros, o “grosso” do bando, com Sabino à frente, desceram pelo Prédio Vicentino, que nos acostumamos chamar de Prédio de São Vicente e que já não mais existe como nós o conhecemos, em um tempo em que ainda não fora construído o edifício do Círculo Operário, contra cuja existência o “progresso” tentou “tirá-lo do mapa”.

Mas, o objetivo do bando era o centro comercial da cidade, na antiga Praça Benjamin Constant. O centro ficava, como ainda hoje fica, localizado na Praça Coração de Jesus, que nós conhecemos como a Praça dos Carros, onde estava situada a capelinha de Santa Terezinha. Ali os cangaceiros permaneciam entrincheirados. O centro da cidade se concentrava em três ruas: de lado, a Rua da Tamarina e, mais adiante, as duas maiores artérias da época: a Rua 15 de Novembro, atual Rua Tenente Sabino, paralela à Rua 7 de Setembro, atual Av. Presidente João Pessoa. É bom que se diga que por aí circulava o menino Ivan Bichara, pois era também aí que se concentrava a variedade de negócios comerciais do seu pai, o libanês João Bichara, desde mercearia (bodega) e padaria, até as antigas snookers, que, certamente, se expandiram, tempos depois, no “carro-chefe” de Zé Eliseu; não há como não citar o Cine Moderno, trazido pelo comerciante libanês, pioneiro na região sertaneja, que se localizava, exatamente, na esquina da Rua 7 de Setembro, com a atual Rua Pe. José Tomás, onde, por muito tempo, funcionou a firma Carvalho Dutra. São ambientes que a história vai perpetuando em nossa memória.

Mas, não há como não revermos, no “centro” dos acontecimentos, personagens com os quais, tempos depois, os mais idosos conviveram. Quem se não há de lembrar do Major Francisco Sobreira (o seu Chiquinho Sobreira) e a sua loja de aviamentos, bem defronte da Praça dos Carros. Aliás, é bom que se recorde: seu Chiquinho era tio-avô de Ivan Bichara; ali, bem próximo, na esquina da Rua 15 de Novembro, estava a grande loja A Paraibana, de propriedade de Diomídio Cartaxo, que outro não era senão o conhecido Seu Midu, que ajudou a arquitetar os planos de defesa da cidade; figuras coadjuvantes daqueles momentos eram seu Francisco Andriola (Chiquinho Italiano) e o seu primo, Dimas Andriola, escrivão do Cartório do 1º Ofício; Joaquim Cartaxo (Marechal); Dr. Cristiano Cartaxo; Dr. Hygino Rolim; Professor Hildebrando Leal; Mons. Constantino Vieira; Major Epifânio Sobreira; Dr. Draenner, o Engenheiro das Secas.

Não passam despercebidas, a quem lê o romance Carcará, as figuras marcantes do Juiz de Direito Dr. Victor Jurema, pai do Dr. Otacílio, médico recém-formado, em cujo consultório, já localizado na Rua Tenente Sabino onde sempre se manteve, e que cuidaria dos feridos na contenda; o Prefeito Cel. Sabino Gonçalves Rolim; o advogado Praxedes Pitanga, que atuava na Comarca e que, tempos depois, exerceu o mandato de Deputado Estadual, em várias legislaturas; o Pe. Gervásio Coelho que, autorizado por Dom Moisés Coelho, se engajou no planejamento defensivo da cidade. Aliás, era em sua casa, localizada nos fundos do prédio da Ação Católica, que alguns planos eram traçados. A título de esclarecimento, consta-nos que o padre Gervásio deixou Cajazeiras, nos anos 40, segundo se comenta, em face de entrevero em que teve como desafeto o Mons. Abdon Pereira, por questões que diziam respeito à hierarquia capitular da Diocese. Perdeu Cajazeiras, mas ganhou o Brasil, com a publicação do seu livro de poesia “Caramujos ao Sol”, editado no Rio de Janeiro, cidade em que passou a morar. No livro, há alusões metafóricas à disputa sacerdotal.

Certamente, nas páginas do romance Carcará, circulam tantos outros personagens ligados aos tais eventos, não podendo nos furtar à citação de alguns, como, Marcolino Diniz, figura emblemática ligada a alguns fatos históricos da época: comerciante influente, que participou do início das atividades futebolísticas na cidade; foi ativista influente nos fatos ligados a Zé Pereira, quando da Revolução de 30, cujo aniversário de noventa anos já foram comemorados, e que culminou com a morte do Presidente João Pessoa, e em nome de quem foi consagrada a antiga Rua 7 de Setembro. Marcolino era lugar-tenente de Zé Pereira, de quem era sobrinho e cunhado, por haver se casado com Xandu, a Xanduzinha, imortalizada na música de Luís Gonzaga/Humberto Teixeira (O caboclo Marcolino / tinha oito bois zebu… / Ai Xanduzinha / Xanduzinha, minha flor, / Como foi que você deixou / tanta riqueza pelo meu amor?); rezam as notícias que Sabino Gomes, no ano de1923, teria sido “segurança” de Marcolino. É bom que se esclareça para quem não sabe ainda: como é especulado, o ataque a Cajazeiras foi fruto de um ato de vingança do chefe do bando que, naquela época, teria sido preso pela polícia local, por cometimento de embriaguez e arruaça, sendo, segundo ele dizia, humilhado em público diante dos feirantes.

Aí vem aquela estória que mais se parece com anedota: o motor da Usina da Luz (motor da luz), que ficava no final da Rua 7 de Setembro, já no balde do açude, começou a soltar estranhos estampidos, com um cadenciamento regular… Não é que o mecânico responsável, João Sinfrônio, pai do Mons. José Sinfrônio, resolveu abandonar o seu posto e, com a quebra da polia da roda maior do motor, este começou a “explodir”, parecendo aos invasores ter ocorrido a chegada de um reforço policial vindo de Sousa!… O resto dessa estória vai se apagando da memória dos mais novos. E para que ela não se apague de vez, convém dar uma lida na obra de Ivan Bichara, recentemente republicada em uma nova edição.

Abraçando a causa do incremento turístico na terra do Padre Rolim, planeja-se, agora com o devido apoio do FEBTUR–PB, estabelecer-se um roteiro citadino daquele entrevero, marcando, na cidade de Cajazeiras, os locais do percurso dos invasores, a fim de que visitantes e interessados revivam, na memória e nas reminiscências, fatos ocorridos nos já distante ano de 1926.

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