O olhar da filha do juiz

Era uma vez… Depois de longo tempo ela voltou exuberante e madura. Poucos lembravam da menina-moça, mais moça que menina de tranças, metida numa farda colegial, o olhar penetrante, a carregar no coração a alma da cidade, onde o pai fora juiz de direito sério, competente, justo. A cidade crescera, adquiriu feição moderna, shoppings, bares, restaurantes, motéis, emissoras de rádio, sinais de trânsito, ônibus urbanos, faculdades, clínicas, escritórios de advocacia. Muitas novidades.

A grande novidade, porém, era ela própria.

Voltava a experiente promotora pública, depois de exercer o cargo em várias comarcas. Entre as pessoas que a guardavam na memória, aguçou-se enorme curiosidade, afinal, como se conduziria a filha do juiz? Magistrado que deixara na região a fama de homem inteligente, íntegro e honesto. A curiosidade fervia mais ainda porque, com poucos meses de atuação na comarca, ela iria acusar, no júri popular, um réu de crime hediondo. Um bárbaro que matara a própria esposa, por rejeitar com brutal violência paixão eventual compartilhada. Nem sequer dissimulou a causa do crime. A vagina, a bunda, os peitos estraçalhados, a faca ensanguentada exposta na mídia. Não era um réu qualquer. Seu status social fez explodir nas redes sociais a intimidade trágica do casal, antídoto da histórica impunidade do machismo, ainda forte no grande sertão.

Pois bem, esse caso horripilante seria o primeiro teste público da filha do juiz, uma bela figura de mulher, revestida agora da imponência do cargo. Olhares múltiplos se dirigiam a ela. Nem tanto com os apelos sensuais do passado à procura de um sinal qualquer da menina-moça, na exuberância da maturidade, a atrair irresistíveis paixões. Ah, como sofreu o desventurado professor! No último instante de vida, o coitado revelou por inteiro sua paixão ao murmurar baixinho um nome, enquanto esmagava o retrato da menina entre os dedos até que as mãos restassem mortas, brancas e rígidas.

Mas isso foi no passado.

Agora, promotora público, já não desfila de tranças em festas cívicas… A nova condição de autoridade lhe exige outra postura. Sem a boçalidade dos medíocres, é claro. O vidro do carro aberto para cumprimentar velhos conhecidos, o riso fácil, o abraço efusivo… a denunciar a menina-moça de outros tempos. Simpática e desejada. O olhar, ah, o olhar, um misterioso olhar!

Estaria faltando o contraponto?

O dia chegou. O dia do júri mais aguardado da região. No solene ritual da Justiça, o tribunal popular iria proferir uma decisão histórica, no linguajar das emissoras de rádio. Conhecido radialista bradou: Será que vivemos ainda na era do cangaço e dos coronéis, a justiça praticada com as próprias mãos? Os jurados se votarão agarrados ao passado ou olharão o presente e o futuro? O assassino será punido com o rigor de quem abusa da violência contra a mulher? O júri decidirá.

Estava presente no auditório um senhor de cabelos brancos, bengala, lápis e caderno. Discreto, fazia anotações. De repente, um incontido grito: “muito bem” ecoou no exato instante em que a promotora, com voz firme, dirige-se ao conselho de jurados e encerra sua fala pedindo rigorosa punição para o uxoricida. O “muito bem” atraiu o olhar da filha do juiz, que exibe sinais de nervosismo ao encontrar a meio caminho o olhar de aprovação daquele senhor. Então, um brilho intenso iluminou, no cabo da bengala, a imagem de uma deusa.

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