Na trave!

Sou Flamengo por influência do meu irmão. E não consegui deixar de ser rubro-negra quando tomei conhecimento dos outros times. Sei que quando eu cansar do Flamengo vou ser palmeirense. Pois futebol é isso: estar defendendo uma causa. E para os mais fanáticos: vestindo a camisa, chorando com as derrotas, vibrando a cada gol, levando a batucada para o estádio. E para os mais doentes e burros: espancando os torcedores do time adversário e o juiz-ladrão.

O povo se desmancha com a arte dos pés. Futebol é cinema, fantasia, espetáculo: é correr atrás do mundo e viver à frente dele. Bola é mundo sem continentes, sem ilhas ou ilhotas, sem oceanos. Bola é mundo apenas com atmosferas: a do suor, a das paixões, a do dinheiro, a da garra. E não adianta se empanturrar de moralismo e dizer que ah eu detesto futebol, jogo pela TV é um saco, esses caras ficam ganhando dinheiro e a gente de besta fica assistindo a tudo isso, etc. etc. Um punhado de etecéteras.

Quero deixar o meu espírito de Luluzinha de lado só para admitir que, se eu fosse homem, talvez fosse jogador de futebol. Podem me chamar de machista, quadrada ou equilátera. Chamem-me, por favor. Homem no futebol pode até ser desbocado e fedorento, mas consegue perceber o campo inteiro olhando pra ele; consegue ser rápido e, ao mesmo tempo, perspicaz; reclama menos dos solavancos, das quedas, dos pontapés. Por outro lado, mulher goleira é bem melhor que homem goleiro: consegue ser mais fria para defender uma bolada, por isso, cai mais para o lugar certo. Mas bola é mundo, e mundo é masculino e feminino. Numa grande decisão, seja num campeonato estadual ou mundial, o mundo torce para o mundo da bola. Acontece que mais da metade do mundo que joga é masculina.

Sou machista com o futebol feminino porque o mundo é machista com ele,  os empresários e patrocinadores são machistas, a mídia esportiva é machista. E sou vítima, mas não me chamem de coitadinha, me chamem de machista também. Se eu fosse jogadora de futebol, não suportaria, no meio de uma partida importantíssima, estar com cólicas ou com a alça do sutiã quebrada. A natureza existe para nos fazer lembrar dos nossos limites. Futebol de homem é velocidade, virilidade; de mulher, leveza e dança. Mas o preconceito existe mais para o feminino porque a descoberta da bola foi, sobretudo, para homens, por isso eles se desenvolveram pela bola e para o futebol mais rapidamente e mais eficientemente dos que as mulheres. O futebol foi inventado para homem jogar, mas o mundo não.

Estamos salvas, temos o mundo, mas ainda não dominados o mundo-bola. Precisamos que algo seja também inventado inicialmente para nós. A mulher de hoje recusa o apenas adaptar-se; a mulher de hoje quer o seu. A mulher quer ser. Se o assunto é futebol, a mulher também quer ser no futebol. E daí? Daí que nesse mundo machista não dá.

A indústria futebolística quer se promover justamente em cima dos arroubos humanos. Quanto mais robusto, forte e jovem o jogador, mais bem sucedido e bacana e rico e contratado. Quanto mais bonito e torneado, sem ossos quebrados ou distensões, mais cheio de princesas, dondocas, e mercenárias. Será que estou trocando as bolas? Sorriso falso é pênalti.

Quando aprenderemos a lidar com as nossas diferenças e possibilidades de uma maneira sã, com menos hipocrisia? Por hora, estejam expulsas as desesperanças e dispensadas as culpas. Eu, como machista também, fui convocada para ficar no pequeno mundo do banco de reservas. Roendo as unhas.

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