“Fado Tropical”

“Fado Tropical” traz no próprio título a intenção da mensagem musical em associar a herança lírica lusitana e a questão política vivenciada pelos dois países na época em que foi escrita, oportunidade em que ambos experimentavam as agruras de ditaduras. Fazia parte da peça “Calabar, o elogio à traição”, que tinha Chico Buarque e o cineasta moçambicano Ruy Guerra como autores. Sua letra foi finalizada em 1974 e logo proibida, só sendo liberada pela censura em 1980, após algumas reformulações. Entremeando a parte cantada, ouve-se o português declamando versos de um soneto. O senso crítico da canção traz uma carga de deboche, refletindo sobre o fato de que as duas nações sofrem a força de uma permanente dependência da ligação às suas respectivas origens.

“Oh musa do meu fado! Oh minha mãe gentil / te deixo consternado no primeiro de abril / mas não sê tão ingrata / não esquece quem te amou / e em tua densa mata / se perdeu e se encontrou… Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / ainda vai tornar-se um império colonial”.

A musa do fado é o Brasil, a nossa “mãe gentil”, como se refere o hino nacional. Dá a impressão de que, nos primeiros versos, é um português que fala ao nosso país. Ele lamenta que esteja sendo obrigado a deixar nossa terra, chocado com os acontecimentos de primeiro de abril de 1964, data do golpe militar que nos levou a uma ditadura que durou mais de vinte anos. Pede que não cometa a ingratidão de desconhecer que foi o seu povo o primeiro desbravador do nosso imenso território, adentrando matas virgens, onde houve perdas e ganhos.

1974, o ano em que se concluiu a letra dessa canção, coincide com a “Revolução dos Cravos” em Portugal, quando foi deflagrado um movimento político de libertação, com inspiração socialista, que depôs a ditadura lá existente, ainda que por pouco tempo. Manifesta então o desejo de que o Brasil percorra o mesmo caminho, reconquistando a democracia com a derrubada dos militares do poder.

Surge a declaração de um brasileiro, se dizendo fazer parte de uma gente que tem a sensibilidade à flor da pele, por ter herdado dos portugueses esse espírito de exaltação dos sentimentos pessoais. Embora também tenha recebido de herança os malefícios que trouxeram por ocasião da nossa colonização, a exemplo de doenças como a sífilis. Ainda quando se vê alguns dos nossos compatriotas praticando o exercício da tortura, sufocando ideias e desejos, produzindo consciências aflitas, outros tantos, a maioria, com certeza, se obriga a ficar calada, com olhos fechados, mas não evita que proclame seus lamentos e pranteie suas dores.

A cultura trazida de Portugal, influenciando na vivência do povo nativo das terras brasileiras. Flores importadas vicejando na nossa caatinga, assim como outras plantas, vindas do estrangeiro, germinando nos canaviais. Licores e vinhos ganhando a preferência como bebidas. Nossas mulatas vestindo-se de produtos da indumentária trazida do Alentejo. E a sensualidade da mulher brasileira provocando desejos arrebatadores nos portugueses, conquistando carícias, muitas vezes, até de forma coercitiva. O português, como quisesse justificar alguns arroubos classificados como truculentos, ríspidos, afirma-se como integrante de um povo que tem a cordialidade como característica, a serenidade determinando personalidades. Tão logo pratique algum ato que mereça repreensão, se toca e se arrepende, numa autocensura. Continua contrito, querendo manifestar um sentimento de remorso. As ações nem sempre são reveladoras das intenções. Podem ser resultantes de impulsos emocionais, circunstancialmente indiferentes à racionalidade. Nessa confissão de culpa, revela que tais atitudes se assemelham a um incesto, crime de perversão sexual praticado entre parentes consanguíneos ou afins.

É comum que no calor da luta, vibrem com mais ênfase as motivações do embate, sem que se avaliem as mensagens do coração. Por isso, resultam-se crueis, desumanas. Porém, logo se pronuncia a voz da razão condenando a atitude cega das mãos, na espera que o coração aplique o perdão.

Tenta unir Brasil e Portugal, misturando símbolos culturais, plantações, peixes, escolas da arquitetura, pontos geográficos, fenômenos ecológicos, na vontade maior de dizer: somos, guardadas as diferenças, um só povo.

O sarcasmo final. Como se o ideal fosse tornarmo-nos um “império colonial”. Brinca com a ilusão de conquista da nossa independência como nação, tão negada pelas forças opressoras do capitalismo. E deixarmos de ser essa sociedade individualista, patrimonialista, patriarcal, legado que nos foi oferecido pela colonização portuguesa. Um desabafo da hereditariedade que não nos dá o direito de deixar de reconhecer, porém, a sua importância na formação de nossa identidade cultural.

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