Memória do cheiro

Mariazinha ficou aflita quando viu o cheiro da rosa mais bela do jardim. “Que lindo, o cheirinho vem e cisca no meu nariz”, pensou ela.

Tudo o que cheira parece ser visto pela cabeça que também pensa em números, em trabalho, em dia que amanhece. A memória certeira aposta no cheiro que quer dizer alguma coisa. E acaba nos dizendo. Mas o que é dito, na memória do cheiro, é o que já havia se apresentado à memória-memória-mesmo. É porque não é fácil explicar. Você pensa, meu leitor, que eu gosto de enrolar as frases, não é? Não pense. Deixe-as enrolar também, para que a sua memória se oriente pela sua vontade, que pode ser até uma vontade despertada pelo cheiro.

Todos sabem que temos um lugar específico no cérebro somente para guardar cheiros. O despertar de cada fato que guardou seu perfume, no entanto, é conferido ao momento mais inesperado. Não é que, de repente, você sente um cheiro de … … por exemplo, de jasmim. Daí, você se lembra daquele dia, em que você ganhou uma rosa e teve a mesma sensação de Mariazinha. Parece ter visto o cheiro. Mas como seria ele? A sua memória o descreveu.

Jasmim, para mim, e sem querer rimar, parece uma porção de nuvens se mexendo no céu e desenhando elefantes. Portanto, jasmim, para mim, é infantil.

Seria tão bom se a memória guardasse cheiros bons e agradáveis… Lembro um dia em que estavam queimando lixo próximo à minha casa, na rua Sousa Assis(prática comum nas imediações do Açude Grande). A fumaça foi entrando pelo telhado, pelo meu nariz, pela minha ira. Não existe coisa pior do que sentir um cheiro sem querer. Até pela boca, a essência chega ao nariz. Daí, portanto, detesto cheiro de fumaça: só admito as indígenas, dos sinais.

Canela. Canela me faz lembrar casco de tartaruga. Cheire canela e o seu nariz vai se transformando em cascos múltiplos de tartaruga. E bons.

Cravo. Cravo é uma mistura de nem-doce com nem-salgado. O cravo está situado na própria tartaruga, que não é bonita sem a casca e, como dizia Clarice Lispector, é um animal jurássico na modernidade. Sentir cheiro de cravo é como sentir a tartaruga andando no nariz e a casca crescendo. Por isso é que cravo e canela se combinam. E por isso é que “o cravo brigou com a rosa”, porque cheiro de rosa eqüivale a pássaro. Sentir cheiro de rosa, é sentir uma revoada nas narinas.

AINDA MEMÓRIA

Não confio em best-sellers. Quando eu ouço falar que livro Tal virou um best-seller, dito com a boca cheia de saliva, eu torço as ventas. Mas, cabe aqui uma admiração ao escritor alemão Patrick Süskind, com o seu “O Perfume”, que foi vendido e revendido como best.

Sensual, o livro descamba maravilhosamente para o realismo mágico, contando a estória de Jean-Baptiste Grenouille, um homem que tem o seu olfato ultradesenvolvido. Tudo no personagem é cheiro. Mas eis que surge um odor particular, amoroso, amável. O cara começa a gostar de alguém.

Assim diz um trecho: “…e a conjunção de todos esses componentes resultava num perfume tão rico, tão equilibrado, tão fascinante que tudo o que Grenouille havia cheirado até então, em termos de perfume, tudo o que ele, brincando, havia criado dentro de si em construções aromáticas, tudo de repente degenerou em simples absurdo. Centenas de milhares de odores pareciam não ter mais nenhum valor diante desse único aroma. Este um era o supremo princípio, de acordo com que os demais tinham de se ordenar. Era a pura beleza.”

Grenouille ainda está lá, no livro. E nós, que apenas respiramos com dez por cento da nossa capacidade, sentimos o cheiro de amanhã: algo assim entre neblina e cavalgada.

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