Mais um cacoete

Agregar valor. Está aqui uma expressão enjoativa e gasta. Alguém, certamente, jogou no ar e muitos passarinhos atravessaram a corrente. Não quero arriscar um autor ou autora que tenha cunhado o termo, mas imagino algo enraizado na área da administração. Dos anos dois mil para cá, um sem-número de organizações não governamentais, associações, coletivos e instituições de interesse público ou privado com interesse público desabrocharam. O mundo dos escritórios fez nascer enigmáticos atores sociais, a maioria preocupada em fortalecer a identidade própria e do seu grupo de semelhantes. Isso parece velho. Não, não é. É que a gente repete as regras, com outros fazeres, mudando os cacoetes.

Esses seres representados em suas comunidades, de diversos segmentos, começaram a produzir e reproduzir peças ou objetos ligados às suas práticas culturais. Trabalho excelente e digno de menção. No entanto, não foram somente essas pessoas que compactuaram da expressão, mas seus apoiadores, patrocinadores e divulgadores. Meus colegas da imprensa, inclusive. Alguns usam o termo, enchem os pulmões, olham esfuziantes, gritam nas mídias sociais e nos seus artigos de opinião. Usam até cansar.

O verbo agregar parece não ter fim ou um parente mais próximo para se sustentar. Apegou-se ao substantivo valor de forma constante, como aquela música que não some das rádios e das festas. Parece que a língua portuguesa é pobre de marré e não conta com qualquer outro verbo ou outro substantivo que dê conta dessa ação.

Mas, o que vem a ser mesmo a agregação de valor? Agregação, nesse caso, exibe um sentido, por si, mercadológico. O valor não é puramente físico, mas emocional ou social, simbólico ou subjetivo. O mesmo sentido, posto pelas agências de propaganda, desemboca nesse valor concreto, que vai ser empilhado pelos cifrões do cliente contratante de uma determinada campanha, em prol de um determinado produto. O cliente lambe os beiços: dinheiro, poder. É o normal das coisas.

Eu estava pronta e batendo continência para contar um daqueles meus sonhos. Aconteceram numa plataforma quadriculada, com estilo de videogame. Mas estive fazendo a revisão de um texto para uma agência e me deparei com o sujeito agregar-valor. Minha narrativa ficcional ou quase real, pois não sei como acordei, foi se desorganizando. O lirismo que busco como respiração, nas minhas fantasiosas, para quem acha, construções textuais, foi desaparecendo como fagulha. A intenção do capital foi corrompendo minha criação. Selvagem, não. Urbana, bem urbana, com uma intimidade que amedronta.

Surge uma tela. São contas a pagar nesse sujeito. Como assim: interrogação. Como assim: agregar valor. Quem inventou: interrogação. Tenho que revisar o texto. Ponto. Outra tela: meus sonhos se dissolvendo no café, assim como o açúcar criminalizado pelos médicos, mas que eu ingiro. Cada quadradinho de sonho, que ia ser transcrito para os meus amados leitores, agregou-se. Oxe. Todos os sujeitos fizeram um motim. Agregaram valores. Socorro. Estou sendo dominada pelo discurso empacotado. Tenho que revisar outro texto. Ponto. O diretor de arte do aparato publicitário me salvou com figuras, fotos, cores e fontes diferenciadas. Apeguei-me às cores. O que seria de mim sem elas: interrogação. Na próxima crônica, você está convidado a entrar no sonho e participar do jogo. Não vamos agregar valor. Combinado.

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