Faça de conta

A receita é muito simples. Pode abrir a massa das palavras, num limiar clarificado entre mente e corpo. Se o espírito aparecer nessa cozinha de mistérios, ative-o. Com ele, virão os múltiplos recheios, que se oferecem para rimar. É possível ordenar as sílabas, como quem foge. Rápido. Voando. Essa velocidade é a mesma da batedeira ou do liquidificador: sem números, por enquanto. Então, de posse do cenário, faça. Faça com vontade. Faça de conta.

A realidade vai se aprumando, em colares e colares de ideias, em mares e mares de pedidos, em bichos e bichos do desconhecido. Sem medo. É que o poema nasce e renasce como uma oração. É possível pegar uma cor especial, em sobretons, entre uma estrela e um buraco negro. Sem fazer barulho, os versos vão se colocando, como num desfile. Mas eis que a ordem toma outra face, consolida-se como uma coisa do além. Um assombro. Um anjo. Uma narrativa. Até que, ao som dos clarins, surgem os verbos para o combate.

Não. Não é uma guerra. É uma brincadeira que soma pontos, promove risadas, atiça os choros, belisca os sonhos. Até que os pensamentos se enfileirem como uma grande apresentação, as frases estão noutra sala, produzindo outras receitas. O açúcar pode ser cristalizado, mas diferente, não passado pela indústria. São cristais de palavras: um quadradinho aqui; um quadradinho de advérbios de tempo; um quadradinho de desejo de chuva. Música.

Com a parte somente racional, parece que a receita tende a desandar. É preciso apertar o botão do divino, do sublime, do alado, do sagrado, do quilate mais subjetivo da joalheria. Com a razão, a massa endurece. É preciso amolecer as bolachas de substantivos e adjetivos. Se o prato for salgado, é possível acionar uma sentinela para isso tudo. Compor e recompor a noção de lugar; saber para quem será a iguaria; buscar auxílio com a respiração, que vem em gotas.

Não. Nada de repente. Mesmo que o autor do quitute diga que recebeu o motivo num rompante. Se disser, não leu todos os ingredientes no caderno, inventou outra lista. Tudo bem. Nem é crime. Nem é doença. Apenas outra receita. Se for massa folhada, melhor. Cada folha, um ritmo. Cada folha, um cheiro. Cada folha, um recado. Nesse caso, a combinação de sons, ao final de cada linha, pode nem sair. Liberto está o verso, há tempos.

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