Glutões

Para quem gosta de comer em demasia, fome de natureza. Fome de mundo, fome de ventos, ainda que alísios, ainda que de juventude. Fome repartida e descrita a todo o tempo, com caldas de chocolate, de determinação.

É preciso comer tudo e comer de tudo. Vitaminas para complementar a coragem, pílulas de intenção, para ao menos se pensar em boas intenções. Uma colherada de fé, para as horas de escuridão. Outra  colherada de luminosidade, para as horas de cegueira. E luz, exageros de luz. Comer pingos e fachos de luz: luzes que deverão ser ingeridas a cada segundo, sempre que lembradas.

Estourar-se com creme de vitória, com recheio de música: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si juntas num suflê, coberto com sensibilidade. O som será a plenitude.

Empanturrar-se de pavê, de preferência com o solidário. Ou de sarapatel de chuvas, regado com esperança. Melar as bocas, sentir as coisas. Comer, comer, comer.

É imprescindível comer muito e estar faminto por devoção. Pensar positivamente no que diz respeito à fome. Fome de idéias acolhedoras, de surtos alegres de sabedoria. Ficar empanzinado de glória.

Pela manhã, um prato cheio de cautela: até roer os ossos para o ofício que se inicia. Consumir toda a gordura da alma que, gigantesca, implora por sorrisos. Eis o tutano da sinceridade.

Gostar de sentir fome. Fome de jardins, algumas cores que podem ser aspiradas, algumas cores que podem ser engolidas, algumas cores que devem ser levadas ao forno. Daí, sempre tostar a paciência, comê-la vagarosamente, deixá-la numa mistura de sangue quente com sensatez. Um bálsamo para a sobremesa, que será de paz.

Mas, no almoço, caldeirões e mais caldeirões de benevolência. Folhas de beijo, rodelas de abraço e uma pitadinha de ternura devem combinar com qualquer vinho branco, tinto ou de equilíbrio. Massas foram reservadas para quem gosta de pastelão de delicadeza ou empadão de misericórdia.

Comer com vontade. Urrar de comer, suar, enfrentar um pacote de biscoitos tolerantes, molhados num café encorpado, de atitudes sãs. Se faltar pão, engordar-se com otimismo, com braços para o trabalho, com pernas para os caminhos da perseverança.

Para jantar, uma sopa resolve, desde que seja temperada com discernimento. Garfadas de sensações são importantes para fome. Fome de bom senso mais fome de autenticidade mais fome de gente. Mas nunca deixar a barriga roncar. Não esquecer também o potinho de caridade, cujo conteúdo será sorvido três vezes ao dia.

Sorte é encontrada em caramelos. Afeto é vendido em barras que, dissolvidas, formam pequenas crateras de confiança. Nesse caso, comer o bolo com as mãos, sem utilizar guardanapos depois. Comer, comer, comer. Não sentir medo. Não se vigiar na balança. Não cumprir dietas. O estômago deve ficar dilatado, sobrecarregado de felicidade.  

O respeito continua sendo produzido pelas glândulas da consciência. Se o corpo estiver falho, comprar ampolas nas farmácias das esquinas da gratidão. Pagam-se com moedas inteligentes e com mais fome, que se instala nos olhos abertos.

Nunca enjoar a compreensão, que é absorvida pelas células e mesclada às gotas de verdade (de verdade). Ao fim de cada gota, beber o perdão destilado, puro, de uma só vez.

As porções de segurança, se cozidas com o cheiro da graça, podem ser retiradas do fogo quando verdes. E a fome se propagará no vácuo, mesmo a fome de arte, de canto, de palco, de imagens, de obras.

Quando todas as fomes estiverem terminadas, os intestinos humanos saciados e a comilança, enfim, realizada, é hora de preparar o amor. Tranqüilidade em tabletes, para o início. Em seguida, uma liberdade inteira.

Mas não se farta tão facilmente. O prato deve estar sempre cheio, transbordando. O amor merece toda a culpa do pecado da gula. Sem direito a indulgências.

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