Eu e o moto-taxista

Ontem a morte veio e me cheirou. Eu, naquele momento que me dispunha ao nariz dela, fui às conseqüências. Não sei se últimas. Como estou escrevendo sobre isso agora, penso que foram as penúltimas.

Eu estava com um rastro de felicidade, assim, meio pamonha, como quem não me acreditava. Meio abestalhada, pensando numa coisa que me aconteceu há uns oitenta dias.

Sempre achei que fosse morrer jovem, com uma lista de ocupações amputada. É por isso, talvez, que a minha pressa é quase borbulhante. Minha pressa é o refrigerante com um corante espelhado na transparência. Minha pressa foi o avesso daquele dia. A morte piscou o olho. Disse: “estou tão perto…”

Eu achei que ela fosse mulher. Eu achei que ela fosse homem. Ela não é gente, mas é carnívora.

Continuei com um ar de lesa. A morte, embora tratada, aqui, com um pronome e atributos outros femininos, com batom, é tríplice. Ela também não é bicha. Ela, matada ou morrida, é três: o antes, o durante e o depois de nós. 

Ela veio e disse: “vai ser agora.” Mas não. Não foi. “Morte, boba, bobona, uuuuu. Nem me pega…” Pensou que eu ia ser atropelada por aquele moto-taxista, com um colete laranja. Pensou que eu ia trocar a minha condição de pensativa e andante, numa rua de risco e asfaltada, por uma vida tediosa, que ninguém dá notícias. Se ao menos, de lá, eu pudesse ligar sempre, aos domingos… Se ao menos eu pudesse receber flores…

A morte me cheirou e me cuspiu. Mas ela gosta mesmo é de sugar. Ela gosta mesmo é de fazer sofrer. Vovó, não entre nessa. Vovó, saia de perto do nariz dessa coisa, que não é macho nem fêmea.

Um poema de Linaldo Guedes, no seu livro mais recente, “Os zumbis também escutam blues”, transporta o leitor para exatamente o ponto de chegada do nascimento. Que significa o ponto até enquanto a morte não chegar. O poema é “Cotidiano”. E o verso que escolhi diz que

“a vida
trapaceia o momento
e no centro
o homem coça a ferida.”

Angustiante, como saber da morte. O moto-taxista nem caiu. Eu não caí. Acho que fomos desviados de um acidente por uma legião de anjos que nos amam. Só pode ter sido. Os anjos protetores dos moto-taxistas imprudentes com coletes alaranjados empurraram o veículo para outro limite de velocidade, após um carro que também circulava por lá. Os anjos protetores de cristinas aéreas me fizeram parar, fechar os olhos e os ouvidos e pensar.

Pensar, minutos antes de morrer, é um sacrilégio. Fiquei ouvindo música, tomando uma cerveja, dançando, sorrindo, num lugar meio mágico e abandonado por mim. Quando percebi, estava sozinha na rua. Ninguém nas esquinas. Ninguém nas calçadas. Nenhum passante, vivente, carente, por ali. Nem muriçoca. Nada. O mundo foi escurecendo, escurecendo, escurecendo. Talvez eu estivesse morrendo mesmo.

Quase fui. Mas o que eu pensava bem antes do processo mortífero era o que eu estou pensando agora, ao escrever. Parece uma espiral. Entre a chegada do moto-taxista e a do susto, eu estava pensando justamente na morte. E em como o cheiro dela é despido de compaixão. 

Antes de morrer de verdade, a comunidade angelical nos salvou. Beleza. Hora de arrumar a estante. 

O que o moto-taxista pensava? Em mais uma corrida de um real? Ou ele estava trabalhando como avião? Ele estava pensando na morte também. Eu sabia. Mas eu não tinha culpa de ele estar com este pensamento. Eu não tinha culpa de ele correr tanto. Eu não tinha culpa de ser pedestre, naquele momento. Ele usava um capacete verde. Como os olhos da morte. Podiam ser pretos ou castanhos, mas ela tinha que vir de olho verde, e disposta à loucura do trânsito cajazeirense.

Ela, mortal por natureza, é a metáfora de todos. Eu precisava dela para dizer isto a você, que está vivo e que me lê agora, com ou sem avidez. Como eu continuo com a pressa de quem vai morrer amanhã, gosto da sua avidez. Como em mim também cabe o abestalhamento de pensar sem conectivos normais, gosto da sua lentidão. Mas, por favor, cuidado com as motocicletas e seus motoqueiros com coletes alaranjados e capacetes verdes. Você pode não ler a minha próxima coluna. Você pode não ser salvo pela comunidade dos anjos.

Ei, antes de sair de casa, pense bem no que vai pensar. De repente, você pode ser atropelado pela morte de moto-táxi.

Eu poderia estar, com o moto-taxista, neste instante, pensando na vida. (Só quem morre pensa profundamente na vida.) Eu e ele, pensando numa maneira de vivermos de novo. O único instante em que seríamos intransitáveis ou escravos do velocímetro. Aí, sim: todo cuidado seria pouco. Já pensou?

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