Dez Centavos e as flores do mal

Estava eu me dirigindo para a oficina mecânica (carro velho é muito ruim, mas a falta de carro velho, é uma tragédia…) quando ao caminhar pela rua Felismino Coelho, estava deitado inerte, um conhecido personagem de nossa comunidade, Wellington, mais conhecido como Dez Centavos, pela forma singular que pede a todo mundo com quem se encontra: “Me dê aí dez centavos?”, em que naturalmente depois de uma noite de terror. Deve ser um terror; todo dia esses pedidos, humilhações, recebimentos, recusas e idas aos fornecedores se suprir da mardita, este descansava na calçada enquanto o sol não o alcançava para outra jornada da mesma rotina de insanidade. Literalmente coisa de louco.

Agora vamos tecer junto com o leitor, o porquê de se entrar nesse mundo do crack, que Dez Centavos é apenas o ramo mais visível. A cocaína foi modificada há mais de 20 anos para ser consumida através de inalação, isso não foi criado por nenhum usuário de ponta de rua, mas por químicos e competentes, naquele tempo, para evitar o uso injetável que transmitia AIDS, com o a morte e conseqüentemente a diminuição de clientes, agora, com um efeito meio indesejado, o uso dessa forma potencializa o cérebro a produzir endorfinas, a substância que causa prazer em 900 %, segundo li na Veja, por cinco minutos.

São cinco minutos no céu e, pelo menos para pessoas sem valores muito bem estabelecidos, e sem perspectivas na nossa sociedade individualista e excludente, produza casos como o de Dez Centavos, que troca as horas de inferno, e humilhações pelos cinco minutos no Nirvana proporcionado pelo crack; uma tragédia que se desenrola a nossas vistas cotidianamente, que por causa de este não ser de natureza violenta, e outro fator que penso influir no fato de todo mundo deixar para lá, é que a nossa natureza humana é perversa e se delicia com ver os outros viverem como fracassados, ou seja: a desgraça dos outros nos causa alguma satisfação, não o volume de endorfinas produzida pela pedra do diabo, mas pelo menos 10 % de endorfinas, a satisfação de negar ou entregar essa quantia mínima e emitir alguma lição de falsa moral, deve operar dentro de nós, é bíblico, a humanidade gosta de ver os outros se darem mal.

A única ocasião que vi alguém falar nos nossos meios de comunicação, por alguma entidade que tem por finalidade tomar conta de tais casos, a explicação seria cômica, se não fosse trágica: de que Dez Centavos não tinha solicitado seu internamento, ou coisa muito semelhante, como se ele intoxicado por essa substância por anos de uso contínuo, restasse algum tipo de discernimento para pedir seu internamento. Mas, o que se passa naquela mente deve ser a satisfação e a carência que faz buscar meios de sentir de novo aquela satisfação que passou, mais nada. é difícil imaginar ele a esperar numa fila e preencher um formulário pedindo sua internação. Apelar para o Ministério Público, seria uma solução, mas esses quatro membros (as quatro varas da Comarca), têm que cuidar de mais de 70.000 jurisdicionados, e como no caso de Dez Centavos ninguém vai se ferir ou morrer (exceto talvez ele mesmo – a solução final), se protela o caso, e fica aquele cidadão e outros, sujeitos a essa terrível prisão sem grades.

Outro caso similar são as prostitutas das carrocerias, aquelas mulheres com corpos desumanizados que ficam no começo da Av. Anísio Rolim, próximo onde se consertam carrocerias de caminhões a se prostituir por cinco, dez reais, o preço de uma pedra. Me lembra um livro que li há muitos anos de Baudelaire, “As flores do Mal” em que o autor, escritor maldito do Séc. XIX. As via como possíveis detentoras de beleza, porém como vítimas de preconceito da sociedade, e daí o título as flores (elas) do mal (nós). Mais de 100 anos passados, podemos até dizer que tal problema não foi resolvido, mas apenas mudou o enfoque, na verdade os Dez Centavos e as “damas” das carrocerias, prestam uma espécie de papel social, o de funcionarem como pessoas onde depositamos nossas frustrações tipo, eu não vou bem, mas aqueles estão piores, além de servirem como tão bem descreveu Chico Buarque em “Geni e o Zepelim”: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir…”.

Quando eu era criança, haviam os mendigos e os doidos oficiais, ainda lembro os apelidos: Noventa e Nove, Cinturita, Boi Leví, Marimbondo (doidos), e um mendigo que exalava um enorme mau cheiro, Lavanca, que eu tinha medo. Hoje, de outra maneira, mais cruel, a história se repete os doidos oficiais estão tomando tranqüilizantes nos CAPS (coisa boa), os mendigos recebem os Bolsa Esmola ou similares(também outra coisa boa), e foram substituídos pelos quimiodependentes, que a gente, ou boa parte dela, se exige que tenham discernimento de se auto-analisarem e pedirem para ser internados… Na realidade, a maior parte da nossa sociedade individualista e excludente quer é que existam bodes expiatórios para nossas fraquezas, e os Dez Centavos e as Flores do mal cumprem este papel.

É a única e triste conclusão a que se pode chegar.

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