Campo e cidade e seus transeuntes

Ah, como bois são diferentes de bicicletas. E isto não é tão óbvio quanto parece. Observei, certo dia, uma árvore enorme e cabeluda, aliás, cipoduda, que havia nascido há uns cem anos ou mais. As folhas balançavam muito pouco, pareciam sempre pesadas, exibindo um verde bem fechado. Mania, que eu tenho, de falar em árvores. Não tenho culpa se considero a sinceridade vegetal superior à humana. Bom, mas, ela – a árvore, estava lá, no meio da rua, encravada no asfalto. Suas raízes deveriam estar tristes, abatidas e amedrontadas pelo óleo quente e escuro do chão urbano.

A cidade é o anti-habitat de plantas e bichos. Como essas criaturas estão longe de suas verdadeiras tocas, dos seus verdadeiros nichos e solos, dos seus verdadeiros ciclos. A paisagem urbana retrai os animais, adapta-os às suas coisas programadas, detalhadas, delineadas; o urbano é estéril, nesse sentido.

Ruas são construídas para elas mesmas, coitadas. E os prédios? Pra quê, solidão maior do que a de um edifício, que nem sabe se está em pé, se toca o céu, se se deixa dormir ou fechar os olhos – as suas janelas. Cidade é a dormência em si mesma, por que não há vivência em objetos. Não há vida em avenidas, alamedas, travessas: há sono continuado. No mundo urbanizado, contam-se as horas, trancam-se as portas, numeram-se os caminhos, os passantes, as histórias. Tudo são semáforos, garis, vereadores, ônibus. Cidade é distância; seus humanos se adaptam pior do que os bichos, pois reclamam de atraso, de desencontro, de rotina.

Na paisagem rural, ao contrário, tudo é uma festinha entre amigos, é uma harmonia silenciosa, perfumada. O riacho, sem precisar de tempo ou denominação, existe, simplesmente existe; vai correndo, secando, enchendo suas próprias paisagens. Campo é aquele presente que se ganha e não se adivinha. Cogumelos, milharais, cigarras, muçambês, juritis e pernilongos são surpresas que não se compram. E os pés de qualquer coisa – de goiaba, de jaca, de manga, de trevo, de trapiá, de cana – não exigem rótulo, senha, código ou etiqueta; não necessitam de título, de xerox, de roupa, de táxi; não gostam de ir à praia, a shows, ao baile funk. O mocó, o tejo, a coruja, a cobra, o marreco, o gola, o galo, o porco e a codorna não vão ao cinema, não pagam contas, não precisam de cadeados, não se abastecem com gasolina.

O mundo ruralizado é vida em estado puro, higiênico e, talvez, feliz. Até o céu é mais azulado e pintado com umas nuvens que são mais formadoras de boas ilusões – e pipas podem colori-lo; o Sol é sorridente; a chuva, mais certeira e agradável; o ar, mais invisível. Uma coreografia de andorinhas, na cidade, soa como um susto ou alívio às situações enfumaçadas; no campo, as pequeninas-pretas-crianças-voadoras  são elas mesmas e tão importantes quanto se estivessem paradas, quanto um horizonte, quanto o dia ou a noite.

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