Vida no abandono

Tenho uma irresistível atração por casas antigas. Não me seduz somente a arquitetura requintada, contornos rebuscados, espaços amplos. As singelas casas de taipa, outrora tão comuns em nossos sertões, também me encantam.

E, razões para tal não as tenho, mas também me fascina casas abandonadas. Sempre em viagens gasto tempo considerável do percurso a identificar, as margens de estradas, casas abandonadas e, num instigante exercício de imaginação, começo a atribuir medidas de tempo a este abandono. As estratégias e ferramentas transitam entre o estágio de conservação de paredes e telhados, das árvores e roseiras existentes, ou não, em terreiros e quintais, algum flagrante de troncos fincados na frente da casa e onde, outrora, montarias aguardavam seus donos em tardes de visita.

E neste exercício de viajar por casas abandonadas me surpreendo desenhando rostos, entoando tons de vozes, construindo histórias e personagens dos moradores que, em variados estágios, transitaram e fincaram marcas naquele espaço. Quais sonhos e dissabores construíram e vivenciaram? Por quais janelas vislumbraram mundos ou espreitaram amores, tantos, inclusive, interditados? Em quais lugares da casa choraram saudades ou escancararam sorrisos de alvissaras por eventos alegres?

E, em momentos outros de viagens e exercícios de imaginação e criação, busco construir os contornos e mobiliários das cozinhas, com a sempre acesa chama de fogões e calor humano, no mexer de panelas, no temperar de pratos, no dosar de condimentos e sabores. E inalo um imaginário aroma de café que exala de um surrado bule de porcelana com a tintura gasta de tanto tempo e uso. E na cozinha, na quietude das madrugadas, me surpreendo com os sutis barulhos e farfalhas de asas de uma pachola barata, como se da família fosse, a se esgueirar entre pernas de mesa e cantos de armários na cata de algum farelo ou migalha de pão ou bolo adormecido pela negligência de um humano, no deliciar de um café de fim de tarde.

E escuto sons e rangeres de redes embaladas por impulsos de pés ou rajadas de aracati que sopram em noites e madrugadas. Redes que embalam namoros e produção de vidas novas. Que acalentam sonhos e sonos infantis. Que se enroscam em dores e sofrimentos de males físicos e de alma. Que abrigam corpos inertes na travessia da sepultura final.

No meu exercício de trazer vidas ao abandono das casas me deparo com um feixe de saudades, memórias, lembranças, histórias. Um punhado de ontens que se fazem hojes como a me dizer que o abandono é apenas um estágio do que, outrora, fora pulsante e pujante experiência de viver.

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