Vem apanhar!

Eu gostaria que ela viesse em forma de chave, em forma de retrato, em forma de estrada. Eu gostaria que ela viesse inteira, robusta, intocável. Eu gostaria que ela fosse de crepe, linho, seda: um pano difícil de ser costurado. Eu gostaria que ela me deixasse mais morena.

Mas ela é safada. Quando vem, para mim, vem respirando. Não sei se viva ou morta, mas vem em galopes, num bicho de várias patas que não é bem um cavalo. Eu a engulo como misto-quente, com catchup, mostarda e maionese, mas, depois, com o arrependimento pela gordura.

Eu gostaria que ela, mesmo silenciosa, fosse de zinco ou repleta de guizos, mas, apesar de ser elevada, contra a luz, ela é magra. E faz força para não andar na roda-gigante. É espantalho.

Ela me diz que é tão correto ser por ela, seguir com ela ou acordar com o pensamento em forma de estátua. Eu digo que não sou sua casa, sou a vizinhança, mas ela não acredita. Ela fecha todos os ouvidos quando eu grito e garante que é um coro de anjos. Se ela vier durante o dia, vem envidraçada, pronta para ser quebrada com as pedras dos meus afazeres. Se vier à noite, vem atormentada nos sonhos, com versões turvas de estórias que não falam. Eu me preparo para evitar seus personagens.

Eu gostaria que ela fosse somente triste, para que fosse mais fácil. Mas ela é santa para os fracos e pagã para os bêbados. Sempre quer mais uma dose. É boêmia e inadimplente. 

Eu gostaria que ela fosse desajeitada, mas ela é um microcomputador. Ela me diz o que é ser amorfa ou algo em decomposição bárbara com festa de fungos. Ela é ladra de jóias tranqüilas. Se for ave, vem, em especial, de rapina. Se for réptil, vem cega dos quatro olhos das duas cabeças corais. Se for inseto, vem como abelha-rainha, que lidera a colméia, produz a cera, e ferroa para se divertir e gastar o ferrão. Se for da água, vem como onda, que se quebra no encantamento e ainda deixa rastros de espuma, barulho e maresia. Ela gosta de surfar e realizar manobras que se afogam. Ela é cheia de gírias.

Eu gostaria que ela fosse incolor na distância. Ela é prisma. Quando ela vem concreta, é sombra. Quando vem abstrata, é o entretanto de mãos dadas com o ainda. Às vezes, ela demora, mas vem, sem tempo certo. Ela realiza as trocas com os ciganos que rogam pragas e mais pragas na caixa da minha lembrança. Vem dançando. Eu gostaria que ela pousasse sobre a honestidade, mas ela é uma mercenária, cuja renda simboliza toda a corrupção existente entre o depois e o futuro. Ela é um decreto de calamidade íntima.

Eu gostaria que ela fosse valente, mas ela maltrata a proximidade sem me avisar. Ela é tão quente, que chega a desaparecer por completo, num átimo. Em outras ocasiões, começa a virar gelo. É a inconstância de uma coceira e, antes, a coceira sem ponto de chegada. Ela dói tanto que não tem coragem de aparecer, de dar as caras, de brigar. “Vem cá, vem apanhar!”, eu digo, com uma compleição inútil. E ela fica gargalhando. 

Isto deveria ser segredo, mas, ela não toma banho. Só se dispõe ao remédio quando se chora por ela, por causa dela, com ela. Ela é vigarista, mas é líder da rua, sabe de todos os pontos de distribuição das lágrimas. Eu gostaria de não respeitá-la.

Ela nunca matou. Mentira de quem disser que ela matou. Ela ajuda na matança: é coadjuvante no crime, mas se atrapalha com as armas. É o detetive que se engana com as pistas.

Eu gostaria que ela fosse a coincidência, a surpresa, a lentidão de conhecer o outro. Mas ela é tão boa, com uma ponta de masoquismo, que adora se machucar com pregos e martelos. Mesmo assim, eu gostaria que ela fosse saborosa nas situações que não vão mais chegar de novo. Eu gostaria que ela fosse um rio limpo quando alimentada com a imagem de alguém que chegaria. Mas ela é um corte na gengiva quando se sabe que o alguém nunca mais vai ser aquele que se despediu.

Ela não se admite sentir. É muro. Ela é a incidência de chuvas de meteoritos do Sistema Solar. Não é jogo, mas vício. Não é gente, mas ninguém. Não é presente, mas embrulho. Ela me compromete.  

Ela quer que eu a convide para festas, mas ela não sabe se comportar. Pode se encaixar no dia a dia, sem possuir um substrato: ser o que não existiu. Pode ser do ontem, com faces de inimizade por dentro. Pode ser do daqui a pouco, com uma mordaça que sorri para o espelho. Pode ser do passado, com uma piscina que não pode ser mergulhada. Que vadia.

Ela é também invenção. É o adeus faminto e desgovernado. É o agora manifestado no corpo ou o quando corroendo na espera. E morde. Morde, morde, morde, morde sem sangrar. Brinca, mas só de esconde-esconde.

Eu gostaria de estudá-la como fenômeno da certeza. Mas ela é sinônimo dela. É a linguagem das próprias inclinações, das próprias liberdades, das próprias chantagens, das próprias virtudes. Eu a chamo de saudade. Mas ela não atende.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicações relacionadas
Total
0
Share