Velhinha da bengala

Minha rua amanhece todos os dias colorida de saias, calças, vestidos, camisas, blusas, sacolas, bolsas, mochilas. Ora em grupo, ora só, rumam ao trabalho. Há enorme diversidade de profissões no desfile diário que presencio, mas a maioria é de trabalhadoras domésticas. Quase todas descem em pontos de ônibus, próximos de meu prédio. Movimentação semelhante ocorre também à tarde, porém, menos concentrada. Uma parte dos trabalhadores circula com sol forte, outra, na boca da noite. É nesse intervalo que, às vezes, encontro a velhinha com sua bengala. Passo curto, muito lento, cuidadosa a exibir o peso da idade, o medo de escorregar, dar uma topada, tropeçar, cair. O amparo da bengala melhora o equilíbrio. Anda um pouco e para. Descansa. Nesta hora, eu lhe dirigi a palavra:

Descansando das canseiras da vida, hein, minha comadre?

– É para não forçar as juntas, tenho medo de levar uma queda.

Você não se entrega… trabalha, caminha, isso é ótimo, realço sua força de vontade.

– Venho do trabalho… na minha idade já poderia ter parado, mas se parar, já viu, a morte encosta mais depressa.

Sussurrou como quem faz uma confidência para a maldita não escutar.

As mazelas afloradas no inchaço dos pés e das juntas, os olhos fixados, por um instante, em seus próprios membros. Aguço minha curiosidade, é daqui mesmo?

– Não, meu branco, vim de muito longe, no tempo deu menina já quase moça.

E eu posso saber onde fica essa lonjura?

Ela silenciou.

A expressão do olhar denuncia o voo para uma terra ignota, em mescla de saudade do passado e de si mesmo. Um suspiro quase audível a trouxe à realidade. Fixou em mim seus olhos tristes, em modo de desejo de revelar-se pela voz pausada.

– Meu branco quer saber de verdade? Da Paraíba. Lá do sertão me levaram pra beira da estrada, na banda de Salgueiro… depois fui vindo, fui vindo, encostando, até esbarrar no mar.

E seu sertão mesmo, onde é?

– Ah, nem sei como anda, já viu, faz um tempão. Carrazeira, no cafundó de Judas, Alto do Cabelão, parede meia com Pau-Num-Cessa… fui arrastada de lá.

Quase desmaio.

Ela segura a bengala com força, me encara, perde-se de novo no tempo, tal a ausência estampada no olhar. O suspiro tenta afastar o bem ou o mal. Aponta para o celular em minha mão:

– Minha patroa me mostrou nesse bichinho aí o retrato de um velho de chapéu de palha, sentado numa carroça puxada por um jumento.

Baixa a cabeça e sai no seu passo curto, lento, cuidadosa em esconder uma lágrima nascente no seu sofrido rosto.

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