Saudade e respeito

Naquela segunda metade da década de 1970, o centro do meu universo era a Rua Coronel Justino Bezerra – a rua da feira das galinhas – e o seu entorno, no Centro de Cajazeiras. O local mais distante daquele miolo por mim frequentado era a escola. Por um tempo, o Colégio Nossa Senhora de Lourdes; depois, a Escola Nossa Senhora do Carmo, mais longe, depois da Catedral.

Às vezes ia até a casa de Vovó, no Alto do Cabelão, mas sempre acompanhado dos pais, nunca sozinho. Era longe, tinha que passar o sangradouro do Açude Grande e a ponte do Colégio Diocesano. Só mesmo com os pais…

Então imaginem a aventura que era ir até o “cemitério novo”, o Nossa Senhora Aparecida, depois da Santa Cecília, lá pras bandas de um tal Jardim Oásis. Pro menino de oito, dez anos, era uma odisseia!

Os preparativos para o Dia de Finados começavam na véspera: comprar velas, tomar banho, jantar, dormir cedo. Arrumados e asseados, saímos pela seis da manhã, eu e meu pai, para visitarmos o túmulo do pai dele, meu avô que não conheci.

Tomávamos o rumo leste da cidade e subíamos a Rua Coronel Juvêncio Carneiro, até à altura dos Correios. Depois, embrenhávamos naquele trecho entre a antiga estação ferroviária da Rede Viação Cearense e o Hotel Esplanada, por trás da Estação Rodoviária Antônio Ferreira.

E aí chegávamos num caminho amplo, mas tomado pelo mato, restando apenas uma vereda. Era o velho e sinuoso leito da estrada de ferro, cujos trilhos já haviam sido arrancados. Ainda não havia a imponente Avenida Comandante Vital Rolim.

Seguíamos em passo acelerado. O Sol já estava subindo. Iria esquentar. No riacho, um pontilhão de madeira dava medo. Mas a mão firme do meu pai dava a segurança necessária para transpor o obstáculo.

A partir daí, já avistávamos a vastidão do terreno da antiga Usina Santa Cecília, potência agroindustrial do começo do século XX, há muito inativa. O arruado de casas era nosso caminho, até chegarmos à rua do grandioso cemitério, ainda relativamente organizado e com poucos túmulos.

Lá dentro, além da saudade e do respeito, o ritual: velas, breves orações, reencontro com parentes e amigos. Silêncio respeitoso. Vamos embora. O Sol já tá quente. E lá adiante teríamos um agrado…

Invariavelmente, tomávamos o rumo do Jardim Oásis, para breve parada na casa do Tio Joãozinho, onde farto desjejum reunia a família: coalhada, queijo, pão, bolo, bolacha, café, leite e coração.

Pelas oito, a aventura já estava rumando para o seu final. Iríamos voltar pra casa por outra rua, mais movimentada. Quebrávamos à direta, descendo a Avenida Júlio Marques do Nascimento, encontrávamos e Rua Desembargador Boto, ainda não conhecida por Rua João Rodrigues Alves, até chegarmos ao largo da Algodoeira Galdino Pires, com seus armazéns de algodão, para continuarmos descendo, agora pela Rua Bonifácio Moura, até a Praça Coronel Emídio Cartaxo, onde estavam construindo um prédio gigantesco chamado Telpa.

Pronto. Estávamos em casa. O ritual de reverenciar os ancestrais, representado por José Pedro Quirino, estava completo. Descansar, brincar, relembrar. Pelos anos seguintes, a tradição seria preservada e seguíamos honrando a memória de outros familiares, cujos despojos passaram a ocupar aquele túmulo. Como meu pai.

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Graças

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