Saudade de dona Belinha

O dia de finados me fez lembrar a morte de minha mãe em 10 de novembro de 1996. Isabel viveu muito, mais de 92 anos. Casou cedo, justo no dia de seu 17º aniversário, com um viúvo de 34 anos! Ela e Cristiano Cartaxo tiveram doze filhos. Nascida em Várzea Alegre, Isabel chegou a Cajazeiras menina-moça, com passagem por São João do Rio do Peixe, onde seu pai, José Joaquim de Brito, o major Zuza da Inácia, foi esbarrar em 1914, fugindo de perseguições decorrentes da sedição do Juazeiro. Esse movimento desembocou num levante armado de natureza política vitorioso com a deposição de Franco Rabelo, coronel do Exército que governava o Ceará. Meu avô, pequeno proprietário rural e comerciante, fora delegado de polícia em sua terra, antes de eclodir a luta armada, portanto era adversário da facção liderada no Cariri pelo padre Cícero e o deputado Floro Bartolomeu.

O major Zuza da Inácia mudou-se de São João do Rio do Peixe para Cajazeiras, a fim de educar os filhos no colégio do padre Rolim, então reaberto pela diocese. Eram quatro mulheres e três homens, todos em idade de frequentar escola. Mas Isabel, a terceira das filhas moças, não teve tempo de concluir os estudos. Foi seduzida pelos versos do poeta Cristiano Cartaxo, farmacêutico numa época em que quase não existia médico no sertão. O poeta encontrou na beleza e na juventude de Isabel a força, o lenitivo para suportar a solidão da viuvez precoce. Não tardou em descobrir que a menina do major Zuza era dotada de senso prático e notável inteligência.

Essas qualidades de dona Belinha, como era chamada, serviram para ajudar a criar os filhos que nasciam um atrás do outro nos primeiros anos do matrimônio. Quando Cristiano e Isabel festejaram oito anos de casados já contavam com seis herdeiros! Eu apareci depois, quase no fim da safra… tanto que, menino de calça curta, fiquei sob os cuidados das irmãs mais velhas, como era o costume nas famílias numerosas.  Minha mãe exerceu grande influência na minha formação.

Mais até do que meu pai, ao contrário das aparências. Cristiano era farmacêutico, professor, poeta, cronista, orador em solenidades oficiais, amigo dos bispos, meteu-se na política cajazeirense, sendo vereador, secretário da prefeitura, chegando a ocupar interinamente a função de prefeito de Cajazeiras. Enfim, era um conhecido homem público. Apesar desse curriculum, vieram de minha mãe e não dele os exemplos que marcaram o menino e o adolescente. Dona Belinha lia muito. Começava um romance ou livro de história ou de memórias de alguma figura importante e só largava quando terminava a última página. Diversas vezes eu a vi lendo à luz de velas, após Sinfrônio Assis desligar o motor a diesel da prefeitura.

Cenas assim, retidas na memória até hoje, me davam a sensação de uma supermãe. E era. E a quebra de tabus? Tabus e preconceitos do velho poeta. O rádio, segundo ele, existia por arte do diabo. Ao comprar um receptor na loja de Murilo Bandeira, meu pai impôs uma condição: ninguém poderia ouvir novela. Novela era do mal! Tolice. Logo a ordem foi esquecida. Minha mãe descobriu, salvo engano, a novela “Nas Brumas do Passado”, na Rádio Sociedade da Bahia.

– Ora, Cartaxo, essa novela é baseada no romance O Sertanejo, José de Alencar, que eu já li e não vi nada demais!

Até os vizinhos se chegavam na hora da novela… Isabel rendeu o intelectual. Sem discutir. Com fatos abalava os preconceitos do marido. Para mim foram aulas de vida, que relembro com saudade. Saudade de minha mãe.

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