O perigo do quintal, aos sete anos

Sarita, o tempo todo, fica nos vigiando. Ela é pouco afirmativa para uma lagartixa de pele tão definida. O pedaço do muro é disputado com Efésia, o pequeno mundo dos líquens, o pequeno paraíso de lodo e cogumelos brancos. As minhocas gêmeas também se divertem por lá.

O Sol sempre sorri, aos cuidados do mundo. Quando a chuva se irmana com toda a beleza do lugar, um arco-íris vem enfeitar o nosso céu. E são mais de sete cores.

Naquela poça, já desfilaram grandes caravelas. Portugal inteiro desceu pelas águas verdes, com todos os seus representantes, especialistas em barcos e descobertas. Agora mesmo, está havendo um campeonato de barquinhos-de-papel. Aquele, construído de crepom, está afundando e já está desclassificado.

Uma senhora bem-te-vi, de um ninho gigantesco na nossa laranjeira, tentou me convencer da riqueza melodiosa somente numa canção. Não entendi. Tive que dar atenção às galinhas, que reclamavam do calor. Danusa, que estava choca, não ligou muito. Ela estava em outro galinheiro. Mas ninguém agüentava mais as cantadas de Gregório, que cacarejava a cada quinze minutos e ciscava na aldeia recém-construída das formigas vermelhas.

No jardim, a agitação era maior: era aniversário de Rosa. As borboletas amarelas vieram de longe para visitá-la. Guapo, o sapo, é que estava doente, com um punhado de sal ardendo nas suas costas, coitado. “Foi alguém sem coração!”, choramingava. Joguei água nele. Salvei uma vida. 

Os cactos pareciam estar mais bonitos, mais espinhosos. Zefa sempre zumbia sobre eles, à procura de algum néctar, mas não encontrava. Zito, seu primo marimbondo, ia direto na fonte: nos girassóis. Escutei, sem querer, um adulto dizer que os girassóis de Van Gogh são bonitos. Não conheço esse senhor, mas tenho certeza que Zito vive se fartando com os girassóis daqui.

Como está no verão, recebemos algumas libélulas que moram numa plantação de milho, a alguns quilômetros. Ontem mesmo cumprimentei Lucinha e ajudei a consertar uma de suas asas.  

Quem realmente não gosta de festas por aqui é Lia Lagarta, que vive se camuflando nas avencas. E alguns gatos vêm aqui, mas não demoram. Ontem mesmo veio um preto, acompanhado de um cinza-claro, um marrom e um malhado. Brigavam entre eles. Gatos sempre são desconfiados.

Mas quem estraga as brincadeiras é Aprígio, a cobra coral. Descobrimos que ela era macho, na semana passada, quando tentou seduzir uma pobre mariposa. Ela se arrastava, com aquele olhar apertado, com aquela roupa flamenguista, com aquela língua bifurcada. Mas eu não vou avisar que ela mora naquela fresta, perto da lavanderia.

Quando percebo que Aprígio vem vindo, tento me esconder no quarto. Nessas horas, fico brincando de palavras cruzadas. Mais seguro do que brincar em quintais. Hoje, por exemplo, aprendi que, “indivíduo que reclama sem muita razão”, com cinco sílabas, é in/tran/si/gen/te, que “sentimento negativo semelhante à raiva”, com duas sílabas, é i/ra, e que a sigla FMI significa “Fundo Monetário Internacional”. Ainda não sei para que servem as três palavras.

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