Nós, os coleguinhas

Nosso imaginário era pura disciplina. Acordar cedo, tomar um banho frio, fazer um lanche, chegar à escola. Da Rua Justino Bezerra até a Escola Nossa Senhora do Carmo parecia uma distância enorme. Antes disso, era de praxe acenar para Dom Zacarias, que estava na sacada do palácio, contemplando a paisagem. Ao completar o roteiro, aquela casa mal-assombrada. Para nós, os coleguinhas, sempre repleta de fantasmas, armadilhas, calabouços, passagens secretas, documentos invioláveis. Atualmente, um banco, uma instituição financeira erguida por entre as misteriosas botijas, a coleção de múmias e todos os ossos de cangaceiros que por ali desfilavam.

Ao chegar à escola, um doce e meditativo início do cotidiano: desejar bom dia a todos os que se cruzassem pelo caminho, ouvir a solene palestra de Tia Carmelita, rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria. Tudo isso compreendia respeito, obediência, amizade, dedicação. Também nós, os coleguinhas, bocejávamos, mantínhamos uma certa sonolência que, certamente, seria alvo da professora. Nós, os coleguinhas, rindo de tudo e aprendendo.

De repente, no meio da aula, a mestra chegava com uma fábula, uma história, um aconselhamento, um sincopado pedido de silêncio com o psh… sh… sh… Nós, os coleguinhas, estávamos ainda experimentando a diferença entre bem e mal. Quem nunca colou na prova? Nem uma olhadazinha, nem uma simples espiada, nem um papel jogado no chão por acaso? Duvido. Mas, caso acontecesse o flagra, seria, no mínimo, uma semana de sermões. A cola era a simbologia da desonestidade. Nós, os coleguinhas, sabíamos disso. Citações bíblicas faziam parte do processo. A preparação para a primeira eucaristia também.

A escola nos fez aprender o que estava fixado nos livros. Era melhor estudar ou usar decoreba? Todo o aparato humanístico nos fazia entender como era mais fácil seguir o caminho da retidão, do amor ao próximo, a essência cristã. Nós, os coleguinhas, por mais que fizéssemos travessuras e teimosias, desde grudar chiclete no cabelo de alguém a soco na barriga de outro alguém, sabíamos que o melhor para todos seria a obediência. Nem todos, entretanto, possuíam o reforço doméstico.

Os resultados podem ser apreendidos hoje mesmo, dentro de cada um. Aposto com quem quiser. Lá, a malemolência não tinha vez ou lugar. O negócio era manter-se firme, em atividade, decidido a aprender, a não brigar, a ser gentil e educado. E a mestra, com aquela frase habitual, para que jamais esquecêssemos, mesmo formados, mesmo morando na ponta do iceberg ou na boca do vulcão, mesmo desistindo dos estudos, mesmo migrando para estranhos caminhos: “A preguiça é a chave da pobreza.” Demorou um tempo para que a interpretação fosse eficaz, mas sabíamos, nós, os coleguinhas, que se tratava tanto da pobreza material quanto espiritual.

Nossas mentes também trabalhavam em favor da curiosidade. Na hora do recreio ou nas festinhas de aniversário estávamos reunidos, meninos e meninas, sempre confabulando sobre alguma coisa. E, então, surgiam as perguntas, das mais mirabolantes às mais surreais, passando pelas que sofriam a influência externa. Como é bom ser criança. Aí, vinham as questões mais torpes ou as mais danadas. Por que será que ela nunca se casou? Com quem será que namorou? Se ela tivesse virado uma carmelita descalça, da congregação das carmelitas descalças, das que fazem total voto de pobreza e vivem rezando e viram carmelitas descalças? Como é ser descalça? Vamos fazer uma surpresa, uma visita na casa dela, todo mundo de uma vez, os quarenta alunos da sala? Por que ela não veio ontem? Ela está doente de alguma coisa: vamos descobrir.

Oh, meu Deus, que confusão na minha cabecinha tão incrédula. Mas, justamente nesses rompantes de incredulidade vem à mente aquela senhorita pedindo silêncio, silêncio transformado numa oração constante. Assistíamos aos gostos dela: sempre muito café e muito caldo de mocotó, dois óculos com armações bem diferentes, um apelido para cada aluno, distanciamento a homenagens. O pessoal da cantina, excelente fonte de informação. Silêncio, silêncio.

Carmelita Gonçalves da Silva: a tia se fez notar pelo mister empresarial. Se tivesse ficado confinada em oração, eu estaria produzindo esta crônica? Teríamos nos conhecido? Eu seria a ela eternamente grata por tantas benfeitorias na minha personalidade, na minha vida? Não sei. Não posso responder. Nós, os coleguinhas, ainda queremos perguntar. Rezar também.

Fazíamos, entre nós, os coleguinhas, tantas e tantas perguntas, as quais, sabíamos: não seriam tão cedo ou nunca respondidas a contento. Entre nós havia um regulamento. Nossa energia era tão forte que brigávamos sempre, íamos de castigo sempre, xingávamo-nos sempre, mas o silêncio era sagrado. Fazíamos sempre as pazes. Vivíamos naquela espécie de reverência à mestra. Não, não tínhamos medo. Não era medo. Era uma devoção misturada a um poço de razão. Nossa lógica funcionava muito bem: não gostaríamos de ser surpreendidos com uma suspensão ou uma carta de advertência aos pais. Melhor ser devoto mesmo, todo mundo, em uníssono.

Era uma overdose disciplinar que nos convencia e nos encantava, a cada compasso do lugar, com gente de diversas linhas da sociedade. Por que será que políticos, homens do poder, candidatos e outros aspirantes ao estrelato iam sempre fazer uma visita à mestra? Vamos lembrar que cada candidato, se fosse a deputado, arrebanhava, de uma tacada só, os pequenos olhares de toda a região.

Nós, os coleguinhas, com toda ruindade ou bondade, sabemos o quanto foi árdua e gostosa tanta disciplina, tanta oração. Aquela campainha deveria virar símbolo do patrimônio histórico e cultural do sertão paraibano. Com um detalhe: a própria Carmé faria de tudo para demover a idéia.

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