O encanto do nome

Desde pequena que o conhecia como “Gelson de João Raimundo”.

Ora, mas é assim que construímos nossas identidades por essas bandas.

Como nos ensina o João Cabral de Melo Neto, quando poetisa: “Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar, Severino de Maria; como há muitos Severinos, com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria, do finado Zacarias”.

Assim, também sou a Mariana de Dona Betina.

Mas, o Gelson das minhas memórias de infância cresceu e o encontro, já adulta, como um homem forte, daqueles traduzidos nos personagens de um Guimarães Rosa. Um homem de uma resistência que supera a cara feia da fome personificada em tantas estiagens que espantou para outros cantos parentes, amigos. Ele continuou traduzindo o sertão em todas as suas cores e variações. Nesta terra aprendeu a amar, inventou família, desenhou amizades e, independente da hora e da circunstância, sempre estava disponível para a ajuda e o socorro a um amigo, a um vizinho

Mas, a estampa que mais me traduz o Gelson é a sua montaria. Um burro bem adestrado pela sua habilidade e que, num trote suave, sempre o levava aos mais variados lugares, como a desafiar a modernidade de motos e outras engrenagens.

Mas a estampa de Gelson e sua montaria também se traduziam no passeio dominical, quando ele, nos seus melhores trajes e com um impecável chapéu de massa, dava um abraço em sua querida Candinha, e vagava por caminhos e ladeiras no percurso de visitas a parentes e amigos, na tarefa de empreitar serviços ou somente no prazer de trocar dois dedos de prosa e aquecer a amizade com uma fumegante xícara de café.

Nas últimas décadas, morando com sua amada Candinha na casa de Zé Gomes, as margens da BR 116, na boca do corredor do Bom Jardim, Gelson de João Raimundo estava sempre presente na festas e celebrações familiares e religiosas da ribeira.

Ah, mas a vida nos prega peças. E, no misto de espanto e surpresa, sou surpreendida, numa manhã, como a notícia de seu falecimento, lá pras bandas da capital, para onde tinha ido à perseguição de um tratamento médico que lhe aliviasse os problemas de um coração sertanejo que teimava em expressar sintomas de cansaço.

E perdemos a contagiante alegria da convivência com Gelson de João Raimundo.

Para sua querida Candinha deixou um coração grávido de saudades, mas também a determinação de continuar a caminhada com altivez e fronte erguida, como a não temer nem mesmo a tristeza da morte.

Pois, como nos poetisa o João Cabral de Melo Neto: “E se somos Severinos, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina”.

E assim o nosso Gelson ganha a relevância de tantos personagens nossos, em cotidianos de forças e resistência, mas também de doçura e encanto. Encanto, como o próprio nome de Gelson, que sequer era Gersom, mas apenas Gerci.

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