Tá tudo escuro

Fui ao aeroporto deixar um familiar às quatro e trinta da manhã. O carro adentrava a escuridão de faróis acesos nos meandros noturnos.

Um sujeito de bicicleta rumo a um comércio me fez crer que era o padeiro que iria colocar a primeira fornada de pão no balcão da padaria às seis horas. Se tiver o cheiro e o sabor do pão de Saora, o melhor padeiro que Cajazeiras-PB já teve, então valeria eu, na volta, comprar o trigo da terra.

O carro, digo, nós, invadíamos o silêncio da madrugada indiferente aos sonhos das pessoas nas casas também adormecidas. Vez ou outra aparecia outro automóvel sabe-se lá para que rumo. Também iria para o aeroporto ou vinha de uma noitada repleta de gozos?

Pelo rádio do carro captei a belíssima música Cio da Terra, de Milton Nascimento. Nunca vi música mais apropriada para aquele momento. Diante daquela escuridão até parecia que estávamos de olhos fechados navegando em sonhos como a cidade também estava.

Quase no meio do percurso, nosso carro solitário no asfalto da cor da madrugada, eis que avistamos um sujeito no meio da pista de braços abertos solicitando que parássemos. Tive que ir reduzindo a velocidade para não causar atropelamento.

Seria um pedido de socorro devido algum acidente de veículos? Observei que não havia nada disso. Que diacho aquele homem queria? Se eu paro naquele deserto ele poderia estar armado e nos render. Já prestei ajuda em acidente automobilístico, mas durante o dia. Naquela hora, naquela ocasião, não dava.

Fui aproximando o carro devagar, o homem continuava de braços abertos como se quisesse interromper minha passagem. Percebi que ele estava noiado. Os olhos avermelhados e aparência de delírio eram nítidos.

A faixa da esquerda estava mais vaga e ele foi deixando eu passar, passei, acelerei e fui embora. Pelo retrovisor vi sua maluquice. Estava deitando no chão. Se alguém viesse em velocidade, já era aquele coitado fora de si.

Chegamos no aeroporto. Eu e Letícia, minha filha, despachamos nosso ente. Retornamos.
A estrada próxima ao aeroporto estava com várias faixas, grandes, desejando boas-vindas aos parlamentares que chegaram há poucos dias para tomar posse no Congresso Nacional. Uma maior exaltava o novo presidente com foto de Bolsonaro só sorriso para o Brasil.

Pelo menos em faixas, cartazes, frases cívicas, o Brasil lá do novo Congresso é um cartão postal. Mas o resto do país está parecendo o maluco que se eu não tivesse cuidado atropelaria. Perdido no meio da noite, encharcado e arrombado como Brumadinho e incendiado como o alojamento dos jovens jogadores do Flamengo.

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"O mais hilário é quando os bolsominions falam que se protegem do comunismo. Não sei em que século esse pessoal está vivendo."
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