Não somos ateus

É impossível conceber alguém que não goste de política. Não se pode dizer que não se gosta de política. A famosa “arte do bem comum” está em tudo o que representa a nossa vaidade, o nosso cotidiano ou o nosso pensamento. Pode-se dizer que não se gosta de fazer política ou de participar dela. Mas, como dizer isto se participamos dela até no fato de acharmos que não estamos participando?

Posso dizer: “Odeio política e não quero participar.” Vou estar participando porque estou dizendo que não gosto dela. É o mesmo caso do ateu, que nega a existência de Deus. Ora, a negação, neste caso, é apenas a contra-afirmação, não a prova de que Deus não existe.

Dizer, portanto, que odeia política, é dizer, talvez, que odeia os maus políticos, o jeito ultrapassado e mal-cheiroso de conquistar o eleitor. E dizer que não quer participar da política é uma grandissíssima piada. Como é que não se participa de política? Até morando numa ilha, o sujeito terá que se auto-administrar e fazer política para si próprio. Ele terá que saber conviver, por exemplo, com a Natureza. E isto é uma atitude política. Ele terá que decidir: desmatar ou preservar, matar para comer ou morrer de fome, mandar uma mensagem pela garrafa ou isolar até idéia.

As atitudes políticas não devem ser restritas a legendas. Posso muito bem ser filiada a um partido e não ligar para o que ele diz ou não respeitar os meus companheiros e até os meus adversários. É o mesmo caso do ateu que, de repente, pode ser o maior executor do Evangelho, sem querer ou sem saber. Todos os dias ele pode estar fazendo caridade, a grande atitude sã aos olhos divinos. Do mesmo jeito, o filiado convicto e, inclusive, eleitor, pode votar só para cumprir a sua obrigação burocrática (e, este ano, eletronicamente burocrática). Deste jeito, ele continua fazendo política, mas silencioso ao possível compromisso de fazer política perante a sua própria história.

O ser humano não consegue fugir da política, mesmo não querendo participar dela. E mesmo achando que não o quer, já está participando, já está fazendo. O sujeito que diz que não se filia a legenda alguma, porque não quer se envolver em política, já está se envolvendo porque ele passa a fazer parte dos sem-legenda. E os sem-legenda estão mantendo a atitude política da não filiação a grupos. Pois eles já são um grupo, mesmo que não queiram.

É ingênuo pensar que só se faz política levantando bandeiras, subindo em palanques, declarando apoio a candidatos, ou até mesmo se candidatando a alguma função pública. Ora, até na nossa casa existem as funções políticas, as atitudes comprometedoras de reunir-se ou excluir-se do convívio familiar, de assumir ou não assumir filhos, de fazer a feira ou de roubar do vizinho. Tudo isso demonstra o caráter político do cidadão, que não precisa ser filiado, prefeito, vereador, deputado ou presidente de qualquer coisa para se achar no direito de fazer política.

Até a minha insônia ou a sua sonolência podem ser políticas. Porque eu posso estar com insônia por vários motivos e você pode estar sonolento por vários outros e todos os nossos motivos não são isolados da cidade, do estado e do país em que vivemos. Nossas opções, quaisquer que sejam, não precisam ser estampadas de adesivos, números, nomes, siglas, não precisam participar de arrastões. Nossas opções já vêm desaguadas em várias outras opções, que, muitas vezes, nem são propriamente nossas, mas frutos do processo político que estamos mergulhados. Mas aí é outra conversa.

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