“Morticínio Eleitoral em Cajazeiras e Outros Escritos”

MODESTO SIEBRA COELHO

Hoje, começo a escrever tocado por certa nostalgia. Com este texto, estou dando continuidade a uma prática que venho cultivando há anos: a de emitir breves comentários pessoais, em torno de livros que escritores amigos me enviam, por deferência que não sei se mereço.

Desta vez, recebi um exemplar do livro acima nominado e fiquei muito feliz em reencontrar seu autor, Francisco Sales Cartaxo Rolim, depois de décadas. Ele, dividindo suas muitas atividades entre Pernambuco e a Paraíba e eu, as minhas, entre a Paraíba e o Ceará, não nos reencontramos nesse longo lapso de tempo. E experimentei igual regozijo ao me lembrar de situações que, há mais de trinta anos, colocaram em proximidade o autor da obra em comento e este seu leitor.

Dentre tais, enumero:

 o fato de compor, com indisfarçável honra para mim, a categoria cajazeirados. A oralidade local consagrou este termo à definição de pessoas que, originárias de outros lugares, se vincularam ou se vinculam a Cajazeiras, amam esta cidade sertaneja e de algum modo contribuíram ou contribuem para a sua história. Ao ensejo, ressalto que foi com muita satisfação que recebi, à época, a inclusão do meu nome na primeira lista de cajazeirados, constante no livro organizado e divulgado pela jornalista Lúcia Rolim e outros, na última década do século passado, denominado Almanaque Cajazeirenses & Cajazeirados;

 a identificação de um bom punhado de amigos comuns, do meio acadêmico e técnico, próximos a nós dois;

 a aclamada entrada do autor, em dezembro de 2021, para o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano — IHGP, do qual faço parte;

 o fato de ter sido um dos seus comandados, em meados dos anos de 1970, quando servi à Secretaria de Planejamento — SEPLAN-PB, sendo ele, o Secretário de Estado do Planejamento do Governo de Ivan Bichara Sobreira;

 por ter deixado traços de minhas digitais na formulação de questões focais, da órbita da Prefeitura Municipal da cidade de Cajazeiras, terra natal de Sales Cartaxo, na inovadora administração do prefeito Antonio Quirino de Moura (1973-1977), referentes a mobilidade urbana, reestruturação administrativa e criação da biblioteca municipal, algumas das ações relevantes dessa gestão urbana à qual tive a honra de ser um dos colaboradores, como Secretário Municipal de Administração.

O jornalista, escritor e homem político Ivan Bichara Sobreira, autor de O Romance de José Lins do Rego, (1977) Editora Universitária da UFPB; Carcará (1984); Tempos de Servidão (1988); Joana dos Santos (1985), estes publicados pela prestigiosa Editora José Olímpio (Rio de Janeiro), e de vários outros títulos importantes, governou a Paraíba no período de 1975-1978 e como Sales Cartaxo nasceu em Cajazeiras, cidade cuja origem está diretamente ligada à figura emblemática e a feitos extraordinários do Padre Inácio de Souza Rolim no campo da educação.

Por volta de 1829, em terras de propriedade de sua família, em rincões do extremo oeste paraibano, praticamente no meio do nada, este visionário sacerdote católico fundou escola nas proximidades do Vale do Rio do Peixe, a qual, atraindo estudantes locais e de outras regiões, logo se impôs como destino dos filhos de sertanejos abastados e não abastados, estruturando o sítio que se constituiu em embrião da formação urbana de Cajazeiras.

Mais tarde, por forças polarizadoras, a aglomeração que ali se desenvolveu foi ganhando proeminência num cenário regional fortalecido pela troca de influência com polos próximos (dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, e da própria Paraíba), em processo de evolução que um século depois a posicionaria como cidade de porte médio no Nordeste, de funções urbanas e atividades comparáveis, em escala, às de Sousa e Patos-PB, Açu e Mossoró-RN, Juazeiro, Crato e Barbalha-CE, Serra Talhada e Sagueiro-PE.

E por que a prática espontânea dos comentários do tipo a que me referi de início?

Neste caso, pelo fato simples de que não saberia ficar indiferente a tão nobre gesto do autor de Morticínio Eleitoral em Cajazeiras e Outros Escritos para comigo, e também porque tenho a mais lídima convicção de que autores de livros devem sempre ser festejados. Trabalham incansavelmente para produzi-los. Impagáveis parcelas de seu tempo são empregadas em projetar, pesquisar, compulsar dados, argumentar, analisar, selecionar, discutir, avaliar, elaborar visão e linha de pensamento, e ao cabo de todo esse intenso labor de construção intelectual publicam obras. Por isso, à minha modesta avaliação, já se tornam credores de aplausos e reconhecimento.

Acrescento, ademais, que quando a obra emerge de esforços desta qualidade e tem, por seu conteúdo e objetivos, a virtude de incitar ao resgate histórico e à capacidade de constituir pontes com a memória e a pesquisa, como percebo que é o caso desta, de plano, ela já se estabelece como obra de referência, dado o importante papel que cumpre como fonte de informações para a construção de outros trabalhos.

Assim, enaltecimento e reconhecimento a quem produz obra de tal envergadura vira obrigação. Estas são as razões pelas quais, sem pedir licença, resolvi fazer estes breves comentários em torno do livro deste intelectual cajazeirense de quatro costados, como se diz por lá e mundo a fora, à ocasião da publicação do livro-raiz que recebi e acabo de ler, com inexcedível gosto, e sempre me lembrando da acolhida que recebi em sua terra, quando lá cheguei, e de muitos fatos, pessoas e cenas dessa amável cidade que foi palco da minha introdução à Paraíba, cinquenta 52 anos atrás.

O livro está orgânica e didaticamente estruturado em quatro blocos que se concertam, formando unicidade temática em torno de um capítulo controverso da história de Cajazeiras. Minha atenção principal voltou-se para o segundo bloco, pela força própria do tema nele abordado e pela ênfase com a qual o autor, experiente investigador que é, visualiza e insiste em que outras questões relacionadas ao leitmotiv da obra e, para além dele, ainda precisam ser exploradas.

Como já aludido, o foco central do bloco é a tragédia que se consuma em Cajazeiras, em dia de eleições municipais, há mais de 150 anos. O fato teria origem em disputas políticas regionais que, de forma um tanto nebulosa, contariam com o envolvimento do Partido Conservador e do Partido Liberal, à época, produzindo ali várias mortes e causando tensa repercussão política que, conforme o próprio Sales Cartaxo mantém aspectos que ainda não foram devidamente elucidados à luz dos estudos históricos.

Após a leitura que empreendi não me restam dúvidas de que MORTICÍNIO ELEITORAL EM CAJAZEIRAS E OUTROS ESCRITOS, de Sales Cartaxo, por seu escopo e conteúdo, se estabelece, desde já, como marco da literatura cajazeirense e da historiografia paraibana. Assim, não me poupo em registrá-la como obra fundamental para estudos que esta própria historiografia ainda está a dever.

Recebi o livro em manhã domingueira, de sol comparável ao de Cajazeiras e, de pronto, pus-me a prazerosa leitura que se estendeu por dias recordações, curtição e anotações. À medida que a leitura avançava, por imagens de internet, fui-me conduzindo em salutar visita virtual à cidade e, passo a passo, pude percorrer ruas e logradouros centrais, em percurso nostálgico pela cidade de ontem e a de hoje. Cheguei à praça em frente da Igreja onde se deu a tragédia e, por minutos, como que fiquei inerte, buscando cenas e imagens do trágico acontecimento.

Na verdade, me deparei com outra Cajazeiras. A cidade não é mais a de quando lá residi de 1971 a 1976, tanto do ponto de vista físico, quanto das suas atividades e funções: expandiu-se territorialmente; abriu ruas e avenidas e consolidou novos bairros; a verticalização já é traço marcante; o comércio se desenvolveu e reflete o caráter regional que o movimenta; a pequena indústria, voltada para demandas básicas, amplia espaços na economia local; o ensino superior a transformou em importante polo educacional com mais de 50 modalidades de formação, em nível de graduação e pós-graduação, operadas pelo setor público e o privado e deixando a cidade sempre em sintonia com os ideais do Padre Rolim; a cultura tem no teatro, nos cinemas e na radiodifusão, as bases físicas do campo artístico local; o transporte aéreo vem representar mais um passo da sua integração no plano regional.

Há quase 10 anos, fisicamente, não visito Cajazeiras, terra que me acolheu com carinho, no já longínquo novembro de 1971. Era o alvorecer de uma trajetória profissional exercida na Paraíba, e que começou nesta cidade, vinculada ao ensino, vocação primeira e maior dessa terra, nascida da ousada e pioneira implantação de um colégio, em pleno Sertão Nordestino, pelo renomado educador Padre Inácio de Souza Rolim, quase dois séculos atrás.

À época, o sertão do colégio, embora distante, tinha a olhá-lo quatro capitais: Fortaleza, Natal, João Pessoa e Oeiras/Terezina e outras tantas cidades de médio porte. Estas capitais e suas hinterlândias tinham conhecimento do que se passava em Cajazeiras em termos de educação e enviavam seus filhos para lá. É grande a galeria dos que foram alunos do colégio fundado pelo Padre Rolim: Joaquim Arcoverde, primeiro cardeal do Brasil e da América Latina; o político, educador e missionário Padre José Tomaz, o cearense do século, Padre Cícero Romão (2001), o historiador Irineu Jofilly, o desembargador José Peregrino de Araújo, ex-governador da Paraíba, o compositor Luiz Ramalho, e uma imensa relação de outros, célebres ou não.

Com minha ausência de Cajazeiras, que trato como circunstancial, perdi especiais ocasiões de conviver mais de perto com pessoas que me são caras, e que em seus diferentes ramos de atividades veem contribuindo para a grandeza dessa terra. Mas, embora de longe, acompanhei com alegria, a junção de esforços que resultou na criação da Academia Cajazeirense de Artes e Letras que tem em seu seio ilustres acadêmicos das minhas relações e é presidida pelo mesmo Sales Cartaxo a quem aqui estou homenageando.

Mesmo que o tempo corra (… e como corre o tempo nos dias atuais!) não dá para esquecer José Antônio de Albuquerque, Maria Antonieta Cavalcante, Antônio Quirino de Moura, Socorro Rolim, Francisco das Chagas Amaro, Marcos Pereira, Zélia Ribeiro e tantos outros com quem proficuamente convivi, trabalhei e sonhamos com uma cidade cada vez mais progressista, como hoje podemos ver.

De modo algum posso deixar de me referir a atores e instituições que me atraíram de Fortaleza para Cajazeiras, os notáveis educadores e as prestigiosas instituições educacionais, a seguir: Dom Zacarias Rolim de Moura, Cônego Luiz Gualberto de Andrade e Monsenhor Vicente de Souza Freitas (In Memoriam) que me concederam postos de trabalho na inesquecível FAFIC – Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Cajazeiras, no Colégio Diocesano Padre Rolim e no Colégio Estadual de Cajazeiras. Só tenho gratidão a estas instituições, das quais me sinto honrado por ter a elas servido, e a estes três educadores, hoje, em outro plano e pelos quais sempre nutri apreço e imorredoura admiração.

Em recente domingo de março, logo cedo, prazerosamente, transportei-me em espírito ao Alto Sertão Paraibano, empreendendo visita virtual à cultural cidade de Cajazeiras by Internet. Como móvel da empreitada, a leitura de Morticínio Eleitoral em Cajazeiras e Outros Escritos, de Francisco Sales Cartaxo Rolim. Olinda-PE, 2022, Ed. Livro Rápido, 256 p., que fiz guiado por imagens atuais, por memória fotográfica que guardo intacta, e por memórias afetivas colhidas de quando ali morei.

Ao cabo da leitura, minhas conclusões são de que a obra de Sales Cartaxo inspira a que outros possam dar continuidade a estudos que visem à investigação de fatos referentes a este convulso episódio da história da cidade que tiveram como testemunha de época e como um dos seus primeiros cronistas, o jurista, magistrado e político Antônio Joaquim do Couto Cartaxo, cajazeirense e importante ator da cena política local e nacional.

Não tenho dúvidas de que estou diante de um formidável livro, a ser lido e discutido, que suscita reflexões, e que desde já se impõe como referência bibliográfica de valor para os estudos históricos. A meu ver, tal importância cresce ainda mais no momento em que o leitor, ao se aprofundar na leitura, reconhece que tem às mãos um trabalho de fôlego e estofo capazes de inspirá-lo a mergulhos no tema, se fosse o caso.

Os cinco ensaios incluídos no livro, todos denominados A Morte do Tenente João Cartaxo, atuam como se fossem elementos romanescos de uma trama que tem o papel de aguçar a curiosidade do leitor. Estes dão força ao livro e importância aos relatos ainda pouco conhecidos, deixados em livro por qualificado jurista, magistrado e político à época em que tudo ocorreu.

Auguro que o maior número possível de leitores tenha acesso a este livro que, com certeza, será de grande contribuição ao meio acadêmico, às instituições de pesquisa e aos estudiosos independentes, inspirando-os a trazer mais luzes sobre fatos e questões relacionados a este tema, ainda não devidamente tratados pela historiografia paraibana. Uma vez mais, parabéns ao autor de MORTICÍNIO ELEITORAL EM CAJAZEIRAS E OUTROS ESCRITOS.

MODESTO SIEBRA COELHO É PROFESSOR E HISTORIADOR

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicações relacionadas
CLIQUE E LEIA

Tempos modernos

A cena parece inusitada, mas bastante corriqueira para os tempos atuais. Num consultório médico uma criança entre três…
CLIQUE E LEIA

A volta

Neste próximo domingo, dia 28, iniciaremos a famosa fase dos jogos “da volta” do campeonato paraibano, temporada 2016.…
Total
0
Share