Lúcia

Esse dia, eu me lembro bem: cheguei cansada, com um formigueiro nos pés. Tudo de formiga estava na planta terminal do meu corpo. As de roça eram as melhores porque não se importavam com a minha estranheza sensitiva. Ferroavam. Outras também passeavam pelos meus dedos: as adivinhas de chuva, miúdas, negras, finas e andando aos montes, esbarrando umas nas outras.

Eu resolvi adquirir uma certa paciência, já que meus pés, que nem estavam açucarados, resolveram explorar o cansaço com um formigueiro imaginário.

Esse dia foi fogo e terra-à-vista, ao mesmo tempo. Eu me lembro dele. E foi nele que eu tomei um susto duplo: primeiro por ser susto, e isto inclui a sensação de estar assustado e com o olho arregalado, e segundo, por ser acompanhado de cansaço.

O susto se deu em pólvoras que não se deixavam explodir, justamente porque o cansaço me ornava com formigas. Mesmo assim, fiquei assustada, quando vi aquele envelope branco, com alguma coisa relacionada ao Poder Judiciário. Pensei logo se eu teria cometido um crime, em sonho, e que a Justiça Celestial teria baixado ali, escrita e lenta, para me intimar. Mas, não. Era a Justiça Terrestre, da Comarca de Cajazeiras.

As formigas continuavam nos pés e aceleravam o passeio, com o sabor pragmático do susto. Eu, um tanto tolhida pela surpresa, fui abrindo o pacote com uma calma falsa e pensativa, vinda não sei de onde. Eu não estava calma, com a leitosa calma, com a calma verdadeira.

Pensei, de novo, qual o motivo de a Justiça me visitar, se eu, naquele dia, não estava má. Naquele dia, mesmo com expurgos de um formigueiro conseqüente de vários temas sem a trégua, eu não havia matado, com o fuzil da minha indelicadeza. Eu também não havia roubado almas, com as estratégias sombrias da minha quadrilha solitária. Eu também não havia traficado drogas de idéias, drogas de palavras, drogas de imagens.

Aquele dia não era dia do meu estelionato mensal, que me proporciona a rasa tarefa de negociar pensamentos. Eu também não estava comprando votos de fé para fins de eleição com os anjos e de conciliação com Deus. Nem estava articulando propaganda eleitoral de amizades antes do tempo previsto.

Naquele dia, tenho a certeza mais reta, que eu não seqüestrei qualquer criancinha, para brincarmos, às escondidas, de bola, cobra-cega, pular corda, soltar pipa.

Eu não me lembrava, naquele dia, ou nos últimos vinte e três anos, de algum delito que merecesse um envelope com o semblante judiciário. Aquele dia, mesmo cansado e transparente de formigas nos pés, foi o susto mais justo, do ponto de vista da juíza, a Doutora Maria de Fátima Lúcia Ramalho. Sim, pois ela foi a autora do susto, e acabou sendo a autora do dia, sem as formigas. Ela não teria culpa pelo formigueiro.

Mas ela veio, dentro do envelope branco, com o aspecto formal e nobre da Justiça, como minha leitora. Confesso que, antes de ler a mensagem, fui me diluindo no susto: li, primeiro, o remetente. Era ela. A juíza. Sentei.

Antes de ler tudo, comecei a pensar, de novo, que tinha certeza que, naquele dia, os meus crimes não estavam na superfície. Comecei a pensar, em carradas:

Como ela teria sabido, então, que eu estava prestes a matar, em guilhotinas prontamente afiadas, a estudante Expectativa? Como ela teria descoberto que eu estaria planejando o estupro da professora Ansiedade? Quais as fontes que, maldosamente, entregaram o meu plano de assaltar o Banco de Dados do meu irmão, para uma partida de jogos de guerra? Como foi que ela soube do meu grupo de extermínio para confusões, o mesmo grupo que trafica armas para a disposição ao trabalho? Qual a ligação dela com o meu compromisso ilegal em sabotar o meu instinto agricultor Crueldade? Como foi que ela ficou sabendo da minha próxima armadilha para capturar o empresário Coração de Alguém? Quem falou para ela do meu desejo de incendiar a casa da Ignorância?

Decididamente, minha cabeça era um maremoto de tantas questões…, antes de ler o bilhete. A juíza? Minha leitora? Sim. Mas, como leitora, me perdoe a desobediência, ela é Lúcia. 

Li o conteúdo e o papel. O susto foi se desfazendo, no tratamento à minha pessoa: “Dileta Cristina…” Que alívio. Mas não mereço tanto da Língua Portuguesa.

O susto foi se transformando numa detenção saudável: uma espécie de Centro de Recuperação de todas as bandidagens que mencionei.

O bilhete ainda me presenteou com as qualidades: leveza, altivez… As formigas, (preciso jurar na tribuna?) foram procurando outra selva de pés. E, ao final da mensagem, com “Continue assim. Você vai longe.”, eu me assustei comigo mesma, e me alegrei com esse longe.

Obrigada, mas, à luz da lei, permita-me perguntar: o longe está muito longe?

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