Leve quatro e pague três

A preguiça mental é um distúrbio alimentado e retroalimentado por muitos falantes da língua portuguesa. Isso é perceptível com o uso avassalador da palavra interessante. A princípio, tudo parece interessante para quem mostra interesse em alguma coisa. A princípio, ligeirinho. A princípio, a fala é concatenada até encontrar, no tempo recorde, em pouquíssimos segundos, a palavra mais fácil: interessante. Interessante.

Vamos prestar atenção. Tudo pode. Tudo pode caber no interessante. E, se não couber, que empurre. Se não couber, acaba cabendo, forçando o número do manequim. A palavra interessante é interessante. Se não der para entrar no ginásio, pula-se o muro. Vamos empurrar a palavra do jeito que der. A palavra interessante é interessante. Se não conseguir pagar a conta no restaurante, lava-se o prato, arruma-se uma forma de fazer entender. A palavra interessante é a solução. Mais barata. É promoção. Leve quatro e pague três.

Se a pessoa não se conformar com interessante, ainda joga um muito interessante. Se a pobreza vocabular não se emendar, ainda joga com extremamente interessante. Ui. Ai. Dói que nem mosquito quase invisível. Aquela mutuca impiedosa. Tão minúscula, tão indecente, tão voraz.  Ferroa, belisca, e não conseguimos matar. Vamos aos exemplos. Fulano, qual a sua solução sobre a reforma da praça? Olha, Cicrano, considero a reforma bem interessante por causa disso e daquilo. E esse livro que você leu, na semana passada, Beltrano? Pode ter certeza: interessante, por causa disso, daquilo, mais daquilo e daquilo outro.

Que situação. Todo o planeta de adjetivos explodiu. Os fragmentos se dissiparam na nossa atmosfera, mas poucos conseguem decodificar. Aí cabe em tudo a palavra interessante mesmo. Nada mais parece ser surpreendente, engrandecedor, magnífico, representativo, envolvente, formidável. Tudo não passa de interessante. Fico até com medo de meus textos serem interessantes. Fico até com medo de não sobrar fragmento do planeta explodido. Interessante.

Não quero aqui exigir das falas dos outros um arroubo de eloquência. Não quero exigir um Machado de Assis na ponta do lápis, com aquela característica perfeccionista e genial dele, em não gostar de repetir expressões. Como o Bruxo do Cosme Velho, não existe, não se copia. A história também não se repete assim, com toda a fidelidade às riquezas, aos problemas e detalhes. Não quero também exigir, dos que se utilizam do discurso oral, o rígido espelhamento num Rui Barbosa, por exemplo. Oxe. Nem vamos ter outro baiano daquele jeito.

Não posso exigir alhos e bugalhos, secos e molhados, fatos e fotos dos nossos falantes. Não posso achar que os fragmentos do planeta de adjetivos são plenamente utilizados por mim. Interessante. Não posso duvidar que tudo isso exista. Quero apenas que todos injetem nas veias da memória aquele remédio sem contraindicação: a boa leitura. Quero apenas olhar os campos, Roberto e Erasmo. Quero ter um milhão de amigos.

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