Exercício mal iluminado

Eram luz. Uma luz vestida e meio atormentada, mas luz – inteiramente elétrons e flexibilidade de energia. Nem sabiam muito disso, mas continuavam luminosos. Em silêncio total, suas palavras voavam num tipo de foguete binário em calmaria, embora com seus objetivos espaciais.

Eram uma luz travestida. Comprimiam a ternura o tempo todo e, como não eram os campeões dessa compressão relativa, deixavam-se escapar com os olhos. Percebiam em cada pedaço de ar compartilhado que Deus existia com perfeição, mas eles continuavam distendendo a existência.

Eram luz motivada por qualquer vento, qualquer aceno. Eram confusão. E começaram a errar, claro. Cada um, com o seu silêncio, com uma ilha dentro de si. E se olhavam, como se quisessem dizer o mundo é pequeno e curto, vamos ao teatro, nossos beijos se combinam em outra etapa do universo – a das águas. Iam catando descobertas, ainda com luz excêntrica demais para os cuidados de todos.

Numa noite nem muito mágica, nem muito quente, nem muito renovável, eles fizeram promessas mudas ou telepáticas. Cada poro dos braços recebia um galho de alecrim para tornar tudo mais perfumado e mais fácil de ser acreditado. Mas pensavam, pensavam – e achavam que dizer – dizer para quê? “Um dia vamos dizer tudo um ao outro, um dia vamos dançar bolero, um dia o martini, um dia vamos um dia”. Assim, os dias se embrulhavam e se perturbavam com uma fauna-e-flora atormentada da luz, que já era bem escura.

Começavam a errar seriamente. Não disseram um terço do que imaginavam. Ela se apavorava – era um pavorzinho cálido e sombrio também – e ele se atrevia a falar – era a fala dos objetos refeitos, reconsertados, rezados. Aliás, os dois viviam num banquete perpétuo enquanto se imaginavam numa redoma impossível: cada um com o seu verbo gelado, com o  seu sorvete no infinitivo, com a neblinazinha dos cabelos, com o balançar dos pingos. Mas isso não é exercício semântico; é adivinhação ao redor de fogueira em noite junina e milho assado.

Mas com a luz se apagando, o pior: o apagar de qualquer coisa que se apagasse de vez. “Foi até melhor”. Um deles se achou trágico, um deles se achou contido. Eles erravam nas contas, nos modos e nas avaliações. E o saldo foi uma paisagem interrogativa, mas amistosa, dentro dos soldadinhos-de-chumbo de cada um. “Um dia vamos plantar uma árvore”; “um dia vamos ouvir piano” – diziam-se, meu Pai, silenciosos e febris. Como eram febris, os dois, naquela luz já apagada, com um cisto doloroso, do tamanho do trem. Foi aí que, numa noite de bar, o fim, sem ser chamado nem nada, anunciou-se, veio e durou o até a hora de algum deles se sentir vazio. Era vazio de sono, de invento, de prudência, de gratidão. Um deles era copo d’água necessário e nem se via numa treva já real e mastigada; o outro era avião distante e grandioso, cinza mesmo. Como trabalhariam os contrários? 

Ela foi parando de chorar por dentro. Ele? Sequer chorara. Provaram de um recomeço simples. É sempre desse jeito. Na terceira pessoa sonhante, a narrativa flui melhor; nesse caso, usa-se qualquer modo e recomenda-se o tempo passado. Quem escreve ou ama sabe disso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicações relacionadas
Total
0
Share