E quem são os comunistas?

A igreja ao lado da escola era o espaço ocupado na hora do recreio por atônitas crianças que, conduzidas por diligentes professores, usavam o intervalo para a reza de terços evocados como arma contra os perigosos comunistas que ameaçavam a harmonia das famílias, a estabilidade da propriedade e a tranqüilidade do governo. Em suma, era preciso se proteger contra os comedores de criancinhas. Isso lá pelos anos de 1966, num período de recrudescimento da ditadura militar e, aluna do Grupo Escolar Lindalva Claudino, no Cipó, não entendia, afinal, quem eram os comunistas e porque eles constituíam algo tão tenebroso ao ponto de carecer das preces daquelas tímidas e amedrontadas crianças. O medo se dissipava ante o temor de papafigos e outros fantasmas e malassombros mais palpáveis e mais presentes em nosso cotidiano.

Alguns anos mais tarde, aluna do Colégio Estadual, em Cajazeiras, lembro o diretor, Mons Vicente Freitas, nos acotovelando no pátio da escola para ouvirmos a doutrinária pregação de um dos professores da escola, ex-aluno da Faculdade de Direito do Recife na época do Golpe Militar, e que, de forma ufanista e extasiada, rasgava elogios aos militares que, bravamente, tinham expulsado os alunos comunistas que ameaçavam transformar o nosso país na pátria do demônio. E, mais uma vez, me perguntava quem eram esses comunistas? Após a cívica pregação o recreio prosseguia e a velha radiola do Centro Cívico invadia o ar com o som chiado do vinil que bradava a voz destoada do Chico Buarque cantando o seu Fado Tropical. Nos ouvidos ressoava os versos de que “essa terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda vai tornar-se um império colonial”. E os comunistas se dissipavam no tique taque da bola de pingue pongue.

Embora a ditadura militar tenha, em minhas reminiscências de criança, certo sentido de conflito entre o desconhecido medo dos comunistas e a delícia do som do Chico Buarque, hoje entendo que essa parte de nossa história ainda guarda, em seus porões e subterrâneos, muitos gritos, choros, lágrimas e soluços de tantos que foram amordaçados, silenciados, torturados e assassinados de forma cruel e pusilânime. Gritos que carecem ser ecoados para que, finalmente, os fantasmas sejam exorcizados. Sem nenhum sentimento de revanchismo carecemos punir os algozes sem perder a perspectiva de compreender e problematizar o contexto que produz o verdugo, a forca, o patíbulo. Carecemos construir as múltiplas verdades sobre a ditadura, instituindo as memórias que são elaboradas sobre esse período. É importante que os torturadores sejam punidos, não como soluções para apagar os traumas do passado, mas como reconhecimento de justiça as suas vítimas. Mas, além disso, precisamos compreender que não é apenas apagando o nome de um ditador da fachada de uma escola que esse período de nossa história será reformulado. Os ditadores continuarão nas frestas e nas dobras de um sistema político e econômico que divide, delimita, segrega.

E os comunistas de minha infância e adolescência se desencantaram nas revelações dos horrores das cadeiras de dragões e “paus de arara”, dos estupros de presas políticas, dos massacres de El Dourado de Carajás e do Carandiru, da Chacina da Candelária. E, hoje, o som estéreo do cd traz novamente a voz do Chico Buarque cantando Angélica e nos indagando: “quem é essa mulher, que canta sempre esse estribilho, só queria embalar o filho, perdido na imensidão do mar”.

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