Duelo de cidades

Rivalidade saudável é uma coisa, mas quando a competição relincha de inveja e faz do próprio jogo outro adversário… Quem ganha na esperteza? Não vejo qualquer objetivo quando não há placar, fim-da-jogada, tempo cumprido. Não vejo objetivos na antiga rivalidade entre Sousa e Cajazeiras, Cajazeiras e Sousa. Qual é o jogo? Econômico-político, esportivo, cultural?

“A minha cidade tem isso e a sua não tem aquilo. A sua não presta. A minha é campeã.”

Cidades são nomes, são gente(s), são aglomerados de história. De lendas também: quanto à competição, cada uma que quer contar a mentira-verdadeira maior. Mas se Sousa é louvada por suas ruas planas, Cajazeiras é reconhecida por suas ladeiras. Não é guerra, não há guerra. Cidades são pessoas, janelas, praças que se beijam, fontes que silenciam um aviso, sinal, choro ou esperança qualquer; não precisam travar uma luta, talvez precisem de bandeiras, talvez. Não poluo de verbos as planas sousenses, mas varro as minhas ladeiras: varro com os olhares, com a memória, com a bicicleta.

Algumas pessoas necessitam de ladeiras por dentro; algumas íngremes e inaceitáveis, desafiando as vontades de vitória; algumas miúdas e ligeiras, que dispensam a carreira das horas, das iniciativas.

A Terra é uma grande ladeira. Às vezes sobrevoamos suas pedras com um pouco de astúcia; às vezes, sobra-nos paciência. Os oceanos também são ladeiras e os seus navios são as nossas tolerâncias ou os dias que faltam para que cheguem até nós os continentes.

Mas não se preocupe tanto com suas ladeiras, e em comprová-las. Estamos na pós-modernidade, comemos um sanduíche global sem tempêro e sem conforto. Foi o cheiro do moderno que não conseguiu salvar Galileu das suas próprias referências: quando ele disse que o planeta era uma ladeira que se abraçava nas pontas. Não nos queimemos como ele. Deixemos as nossas armadilhas em paz.

O Atlético e o Sousa não são rivais; rivais são as ruas de cada cidade. Se o rapaz de Sousa vai pedir as mãos da filha cajazeirense em casamento, o pai não abençoa, não concede. Prefere dizer: “Sua cidade é insensível e plana.

“Mas o que seria do nosso morro (e subentende-se um conjunto enladeirado) Cristo Rei se fosse reto, retinho? Não teríamos, no mínimo, o prazer de vigiar o acender e o apagar das poucas luzes lá embaixo.

Somos preocupados em vencer um jogo virtual de desaforos, não lembramos de ignorâncias ou necessidades que cabem somente em nós. Não nas cidades. Cidade plana versus cidade enladeirada. Pelo menos essa rivalidade é boa. Só posso dizer que é boa, não posso afirmar que é a única. Sou contra rivalidades desmedidas, sem quaisquer fundamentos. O que estou dizendo pode não ter fundamento. Talvez tenha ladeiras. Talvez tenha cidades que não merecem agressão. Pois não se agride uma cidade. Cidades são atestados de vida: em árvores ou edifícios, em bailes ou feiras, latadas ou castelos. Se você é leitor sousense, não se sinta ferido, sinta-se plano. Acredito apenas nas ladeiras como patrimônio público que vence o cansaço ou o motor do carro. E acredito nas ladeiras de cada um, mas acredito somente nas úteis e perdoáveis.

Talvez precisemos de ruas e de corações planos também. De facilidades. As ladeiras interiores, muitas vezes, sofrem com saídas e chegadas porque são mais árduas. E mais suscetíveis ao desencontro.

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