Devaneio na pandemia

André acomodou-se na poltrona, afivelou o cinto, abriu o livro, comprado na livraria do aeroporto, e correu a vista no sumário. Reparou na orelha que seu colega estava bem na foto. Escolheu um conto curto e tentou, pouco a pouco, mergulhar na fantasia, mas sem a menor concentração, um olho na página, outro no burburinho do corredor do avião. Viu pela janela a estupidez humana tentar arranhar nas nuvens a ilusão de morar perto do céu. André saiu desse quase devaneio por uma voz, mal escondida em rosto de óculos escuros: bom dia, senhor. A resposta veio insegura. Já vi essa criatura em algum lugar, murmurou sem som. Quis retornar à leitura, os olhos teimando em fixar-se no papel, fingindo-se preso à página. De novo a voz melosa interrompe.

– Romance?

Agora, sem os óculos, os cabelos ajeitados com as mãos, o leve sorriso nos lábios mais impressionava do que o olhar. Não, não… são contos, e logo lhe estendeu o livro. Ela segurou o Contos imorais… lê em voz alta, um fio de malícia a escorrer nos lábios em riso, muito mais do que os olhos, então, já postos nas palavras da orelha da brochura. André borbulhava por dentro, à vista daquela jovem sentada a seu lado, o avião ainda parado em São Paulo. Mas esse cara é muito feio, ela disse em tom de meiga desculpa que o flechou, já enfiado em ruminações… é ela, não há mais dúvida, é ela mesmo, Dulce! Alheia ao remoer do outro, aponta:

– Conhece o barbudinho?

– Sim, sim, claro, é meu amigo, Ronaldo Correia de Brito.

Dulce se desmancha. Nunca lera mais do que quatro ou cinco livros na escola, sabe, morava na favela, era um saco ficar lendo bobagens do tempo antigo, briguinhas, namoricos, putaria sem graça… o bacana escreve uma porrada de páginas pra no fim dar uma trepada… desculpa, tá, é meu jeito de falar, desculpa, mas afinal, encara André e chicoteia: ora, o senhor tá lendo um livro de safadezas…

O avião já está em voo de cruzeiro.

Dulce, que folheava a revista de bordo, de repente, mostra a foto, Getúlio Vargas com um charuto imoral, olha aqui o safado, já ouvi falar muito, mas quem é mesmo esse velho?

– Foi um gaúcho que surfou na onda da rebeldia de militares jovens, aliados a paisanos insatisfeitos com oligarquias dominantes. Juntos, derrubaram o governo e se instalaram no poder. Vargas gostou tanto que passou 15 anos mandando, os fardados ali, firmes ao lado dele.

– Taí amei o surfou… adoro ouvir essas histórias.

André não se fez de rogado.

Debulhou episódios marcantes da história do Brasil, cena dos bestializados espiando o carnaval, no dia da proclamação da República, lances da revolução de 1930, do Estado Novo, a queda de Getúlio, sua volta triunfal nos braços do povo. O trágico suicídio. “Mas esse povo de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém”…

Dulce arrepiou-se.

Anunciam a aproximação do aeroporto de Salvador.

– Não vou deixar você seguir pra Fortaleza, vamos descer aqui na Bahia, falou com a firmeza de senhora de engenho, ela que nascera no morro. André não teve escolha diante do argumento definitivo: eu ia pra Manaus, tá ligado, mas não posso deixar essa aula para depois, senão babau.

No táxi, indicou o destino com duas palavras.

Já em casa, ainda apalermado com tamanha e inusitada situação, André teve um alumbramento. Saindo do banho, de shortinho, cabelos soltos, ela ameigou-se mais ainda, sinta-se em casa, meu velhinho. Os lábios entreabertos escorrendo mais alegria do que os grandes olhos.      

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