Despedida de paixão

Ela sempre estava lá. Nos encontros, reuniões, palestras, visitas, era presença garantida. Discreta, olhar atento, ao lado do marido, participava e se apropriava de informações que, agregadas a uma vasta experiência de vida, vão transformando mundos, olhares, vivências, práticas, sociabilidades.

A trajetória de sertaneja que, adolescente, se torna adulta pelo casamento, – única possibilidade de vida futura, – traz as marcas doloridas de agruras e incertezas. Lembranças também dos tempos de moradora quando a sujeição ao dono da terra limitava horizontes, estreitava sonhos, encurtava posses. Posses limitadas a galinhas poucas, porcos e cabritos minguados e duas ou três roseiras cultivadas em enferrujadas latas de querosene que adornavam os cantos toscos da casa de taipa.

Mas Dona Josefa também trazia as marcas e lembranças da luta. Não a luta ensandecida de armas e mortes. Mas, a luta da vida e pela dignidade de ter e cultivar a terra sem a espreita do dono que, com cercas e cercos, atrofiava qualquer iniciativa de tratar a terra como parceira e produtora de alimento e vida, mas como usina de lucros e rendimentos. E, muitas vezes, morte.

Conquistada a terra na luta a casa agora é acolhida e aconchego. O roçado produz as sementes apaixonadas do milho, feijão, jerimum, gergelim, que tornam fartas mesas, barrigas e esperanças. O assentamento batizado em honra ao mais brasileiro dos italianos, Frei Damião, é lugar de vida e espaço de gente. Casas de quintais e chiqueiros onde galinhas ciscam e porcos fuçam tranquilos sem o temor da vigília do patrão que limitava a quantidade das criações. Até mesmo vacas pastam nos campos que convivem em harmonia com a caatinga, agora elevada à posição de elemento constituinte da vida e do espaço.

Na minha pesquisa de doutorado Dona Josefa e seu esposo Seu José Feliciano são partes importantes da composição científica da tese como guardiões das “sementes da paixão”. No alpendre da casa no assentamento, numa tarde de verão, olhos espichados para o nascente contemplam árvores que eles ostentam como frutos da convivência enquanto um delicioso café anima a prosa e estica falas e narrativas. Sementes de milho roxo e outras variedades que eles foram permutando em feiras e visitas de intercâmbio pelos sertões afora, agora batizados de semiárido, são espalhadas em urupembas. Sementes que são experimentadas em cultivos cuidadosos e vão fortalecendo a convicção de que viver e conviver no semiárido é possível, viável e humanamente digno.

Outras vezes encontro Dona Josefa com o companheiro Seu Zé Feliciano na partilha de uma carroça puxada a burro retornando da feira na cidade de Cajazeiras. No acostamento da estrada, chapéu de palha na cabeça, fronte erguida, os olhos revelando como aos homens, quando a luta resulta em conquistas e realidades possíveis, viver é um ato alegre.

O isolamento social não nos permitiu chorar a morte de Dona Josefa. De aconchegar seus filhos, netos, esposo no calor fraterno de um abraço. Mas, na solidão de nossas quarentenas, alimentamos uma certeza: como Dona Josefa e Seu José Feliciano, outras e outros pontilham esses nossos sertões semiáridos guardando sementes, paixões, esperanças e, sobretudo, prosas e cafezinhos como indício verdadeiro de humanidade.

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