Complexo de Poliana

Se você ainda não leu “Poliana Menina”, não sabe o que está perdendo. Não sei se você sabe, mas “Poliana Moça”, do mesmo autor, já estava aprendendo a ser pessimista. Daí, ele nunca ousou escrever “Poliana Mulher”. Seria derrubar toda a Teoria do Otimismo.

Explico: Poliana, a garotinha da estória do escritor Eleanor Porter, famosa lá pelos anos 60, é uma piada congestiva. A menina não possui um só defeito: é linda, obediente, sonhadora, terna e alegre. Numa situação desesperadora, Poliana, com o seu otimismo de primeira qualidade, aplica nos adultos o “jogo do contente”, imaginando algo que seria bem pior. Por exemplo: caí da bicicleta, estou arranhada, fraturei o braço direito. Rapidamente, jogo: “que bom que eu não fraturei o crânio” ou “que maravilha continuar viva” ou “ainda bem que foi só um braço fraturado”. Santo otimismo. Para uma garotinha de cinco anos, isso é tão fácil. E para os que trabalham, suam, vivem e morrem por dia, passam fome e são assaltados? Mui fácil.

Dona Mercês Holanda, um dia me encontrou na rua e disse: “Minha querida, você escreve tão bem, mas é muito sutil e sentimental…”. Se foi elogio ou não, agradeço. Mas, professora Mercês, o meu sentimentalismo me rende uma crônica por semana, ainda que disfarçada de pessimismo.

Tenho uma prima chamada Poliana, filha dos meus padrinhos Lana e João de Deus Quirino. E engraçado: ela é “Cristina” também. Espero que os nomes não tenham nada a ver com isso de ser ou não ser pessimista. Já pensou? Polianas Cristinas seriam, além de otimistas ingênuas, sentimentais. Ou pessimistas disfarçadas? Ai, meu fígado já está doendo.

Mas ser Poliana Menina é bom, de vez em quando, ou seja, ser cego, surdo e mudo. O “jogo do contente” é uma réplica daqueles macaquinhos trigêmeos: Não Ver, Não Ouvir e Não Falar. É por isso que eu não sou totalmente polianista.

Neste momento, resta-me lembrar a poesia de Augusto dos Anjos. O que era que queria um doutor como ele, sentado numa cadeira quente de uma repartição pública, escrever inteligentemente sobre a vida? Ora, a sábia visão anti-Poliana das coisas. E a delícia pessimista em “a mão que afaga é a mesma que apedreja”?

Augusto é o nosso poeta pessimista de plantão. Ele, ao contrário da menina, jamais faria o “jogo do contente”, jamais. Ao contrário de mim, jamais seria sentimental. Jamais se deixaria identificar por aquela canção rasgada por Altemar Dutra.

Mas é na Música, que milhares de compositores transpiram, nas suas letras, a cachaça de uma vida que nunca presta. Ouvir Lupicínio Rodrigues, então, é chegar ao apogeu do pessimismo. Veneno bom e conflituoso, sob os olhos do perdedor massacrado que está querendo se vingar. Lupicínio, como ninguém, soube dizer que nem se o mundo caísse sobre ele… “Nem se Deus mandar, nem mesmo assim, as pazes contigo eu farei…” Isso é que é orgulho e, portanto, pessimismo.

Quero ser otimista, mas enxergando o lado turvo do “jogo do contente”. Do tipo: “caí da bicicleta, estou arranhada, fraturei o braço direito e por isso vou ficar uns quinze dias sem escrever”. Talvez seja o “jogo da realidade” mesmo, sem polianas e cristinas pelo meio, sem sorte ou azar, dados ou tabuleiro. Joga-se em silêncio.

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