Carta aberta ao futuro

Futuro, quero ver-te. Não em bolas de cristal. Não no balanço de búzios abertos e entreabertos. Não nas figuras do Tarô: nos viajantes, nos fardados, nos maltrapilhos ou nos magos.

Onde tu andas, futuro? Não falo de ti em runas ou em moedas de adivinhação. Onde tu andas, futuro? Espero que na asa de algum rouxinol que, porventura, cante em mi menor, tão certeiro. Tu deixas meus dedos líricos para escrever-te agora.

Quero apreciar-te em pequenos vasos de trevo, mesmo nas hastes que sustentem apenas três folhas, roxas ou verdes, sem qualquer prenúncio de sorte grande. Quero encontrar-te na grama, nas costas de alguma formiga trabalhadeira, que esteja livre das pisadas humanas.

Como tu te apresentas a mim? Nos dias chuvosos? Talvez no encanto real, olhar de criança. Tu estás, agora, começado neste milênio novo? Posso dizer que tu és os olhos arregalados e a ansiedade de tanta gente. Tu és andejo, pirilampo como as esperanças que piscam há tanto tempo.

Futuro, tu dormes, por acaso? Espero que em algum corpo de anjo, que, ao acordar, fique aceso em cometas.

Não falo de ti na imagem das videntes, das vidraças, das videiras. Não falo do teu eixo nas mãos interpretadas por ciganos. Mas tu és fumaça ou raio?

Não te espero para sempre porque não quero ser para sempre: quero ter-te desejado como um fim, assim como um meio, assim como um princípio. Desculpa-me: vou acabar-me antes de conhecer-te por completo. Eu sei que tu pensas que a graça é o nosso desencontro. Assim, tu és selvagem quando me abandonas e te fazes breve. Quem sabe, para que eu perceba as tuas desavenças com o passado. Fica aí mesmo: vou vendar-te, vou vender-te. Não te faço fiado.

Tu queres muito. Por que tu me buscas com vozes múltiplas? Acaso tu não sabes que tenho apenas dois ouvidos? Tu queres muito. É essa tua mania de ser dissolvido aos montes.

Tu sabes que te espero de qualquer jeito, em qualquer vento que seja norte, em qualquer maresia, em qualquer sol quente. Eu sei que tu te escondes para mim, para o outro, para todos. Tu és elástico, tu és um átimo, tu és pedra quando precisas. Tu te cansas? Espero coragem em ti.

Falo do teu lado bom, da tua face benfazeja, mesmo que tu sejas uma dor indefinida: uma dor boazinha ou malvada. Nem quero, por enquanto, mirar-te entre guerras, terras disputadas, balas trocadas, entre a morte. Mas tu és natural, inerente, algo que já é nascido, como um cromossomo que aparece nos traços do rosto de um filho.

Confundem-te com destino. Tu és, no mesmo espaço, tanto um astro quanto um fiapo de nada. Tu queres ser contradição. Tu és a dúvida.

Eu queria, futuro, tua vinda a explorar-me, mas não sou caverna, não sou fóssil, não sou mapa. E tu és geografia de horas, minutos, segundos.

Não sei como tu te confortas, pois não te vês através da lembrança. Tu és obtuso porque tu não sabes o que é ser lembrado. Às vezes, da tua parte, há tanta infidelidade aos planos do mundo, tanto caminho desfeito. Ah, futuro, como tu és pardo. Tu és o assunto, o tema ou o mote. Tu estás entre a causa e o efeito. Como saber-te? Como agradecer-te? Não sei. Não sei nem se posso pedir-te alguma coisa.

Futuro, futuro, tua aura é composta de esquinas e de cada ser humano que tu interrogas, de cada ser humano que tu classificas nas saias do teu inquérito. Que as perguntas sejam mais simples, então. Que sejamos mais simples. Que tu sejas um faz-de-conta sem contas, sem cobranças.

Eu sei que é difícil. É que somos tão impacientes, futuro. Queremos a tua presença, para que a nossa crença seja realizada. Tu queres, a todo instante, ser vislumbrado, alimentado, tecido, descoberto. Quem te acha Deus está enganado. Tu és, às vezes, uma proposta. Tu és, às vezes, uma saída.

Futuro, quero beijar-te. De leve.

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