A vírgula

Começo o ano novo com uma vírgula. Na verdade, vírgulas não servem para começar, mas, se não utilizadas de forma correta, chovem na consciência. Foi assim. Assim mesmo. Uma tempestade de sinais gráficos, sinais saltitantes, sinais que contavam anedotas, sinais que pichavam os muros. Na crônica anterior, ela estava lá: vírgula equivocada ou múltipla agonia que se encarregou de sorver uma gramática diferente.

Escrevi sobre as minhas colagens. Escrevi que o que era amorfo cria ramificações de mensagens. Tudo bem. Mas separei o pobre sujeito do verbo. Que coisa feia. Que coisa feia para uma jornalista. Que coisa feia para uma professora. Que coisa feia para uma revisora. Parece crime inafiançável, mas meu jeitinho brasileiro vem aqui, com a cara mais lisa do mundo, limpar o ocorrido. Na frase anterior à feiura, criei explicações. Escrevi que o que era aparentemente frio e descartável, quase lixo, vira uma ideia. Daí, nessa lógica, minha sequência emendaria: o que era amorfo, quase isso, quase aquilo, cria tal situação. O que eu queria mesmo era ter criado uma série de quase entre vírgulas. Não deu. Saiu uma vírgula, de forma descarada, sozinha, separando o que não devia.

Vamos respirar bem fundo. Pronto. Da próxima vírgula sem tamanho, confiarei no destino. Como colaboro também para eletrônicos, o sofrimento poderia ser terminado. Mas, quando o assunto é impresso, a dor é maior. O tempo ali congelou. O papel paralisou. Pensei: na próxima, Cristina, sua missão será pedir desculpas. Lembrei-me de aulas e mais aulas explicando a função da vírgula. Pensei: não é possível começar o ano com uma vírgula. Pois comecei. Pensei: não é apropriado começar o ano com uma vírgula. Pois estou começando. Pensei: não é bonito começar o ano com uma vírgula. Pois é. Estou aqui. Estamos aqui, eu e ela; ela, a vírgula.

Quantas e quantas vezes eu explico aos meus alunos: não separem sujeito de verbo. Quantas e quantas vezes eu oriento: por favor, observem o discurso. E outras: vírgulas servem para enumerar ou sequenciar elementos. E mais: vírgulas servem para respirar. No caso dessa minha vírgula desobediente, a respiração foi forçada. Pior: entrou água no nariz, na hora do mergulho. Impossível dizer qualquer frase. Que cilada.

No meu caso esquisito, eu quis fazer um aposto, junto com algo que servisse de continuação para o sentido da frase anterior. Resultado: aprendi com a surra. No meu ouvido, aquela voz que não se cansa, soprando, em dó maior: revise. Revisão, revisão e sempre revisão. Na dúvida, mais um punhado de revisão.

Se vírgulas estão sobrevoando a minha cabeça, pedirei que se acalmem. Por favor, não entrem. Por favor, não pousem, não estacionem, não queiram o absurdo. Sim, claro, falarei mais sobre colagens. Há muito para falar nesse jogo de pensamento, papel e cola. Calma. Ainda não chegamos às colagens mistas: as que não conhecem vírgulas e precisam das reticências para a eternidade.

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