CPFs cancelados

Não foi só um sentimento de tristeza, mas, principalmente, de grande preocupação e indignação, ao ver publicada nas redes sociais uma foto do presidente da república segurando uma placa com os dizeres “CPFs CANCELADOS”, ao lado do comunicador Sikeira Júnior e alguns ministros do seu governo, após entrevista concedida no programa de televisão conhecido nacionalmente pelas bizarrices provocadas diante das câmeras. A entrevista, por si só, já foi um episódio que causou estarrecimento pela maneira como foram tratadas situações de extrema gravidade que estamos vivenciando em nosso país. Não se percebia qualquer manifestação emocional com a tragédia que se abate sobre a sociedade brasileira. Pelo contrário, o que se viu foram gargalhadas de desdém e a ausência total de empatia com o sofrimento de centenas de milhares de famílias enlutadas ou alcançadas pelo vírus mortal.

Qualquer que fosse a motivação daquela festiva celebração com o cancelamento de CPFs, não há justificativa para tal comportamento. Todo mundo sabe que essa declaração de “CPF CANCELADO” é uma gíria adotada por milicianos quando da execução daqueles aos quais definem como criminosos (como se eles igualmente não fossem). O velho jargão punitivista sadomasoquista em defesa da prática de extermínio no mundo do crime. Ainda que essa lógica perversa fizesse sentido, é totalmente inoportuna sua proclamação entusiasmada contando com a presença daqueles que têm sob sua responsabilidade conduzir os destinos de nosso país. Afinal de contas, temos quase quatrocentos mil CPFs cancelados, por enquanto, de brasileiros vitimados pela pandemia do Covid-19. 

Fica difícil não associar a placa infeliz com a mortalidade que está acontecendo no Brasil. Alguém pode dizer que o presidente não estava se referindo a essa calamitosa estatística. Mas ele devia ter consciência de que o momento dramático que vivemos não permitiria tal celebração. Até porque não dá para festejar o cancelamento de CPFs, por qualquer que seja o motivo. Muito menos, quando se trata de perdas de vidas humanas. Não vejo razão para que alguém se sinta feliz com isso. A desgraça, seja qual for a causa, não pode ser tratada num ambiente de chacota e de escárnio. Brincadeira de muito mau gosto que machuca a alma das pessoas de bom senso.

Afinal de contas ao Estado cabe a missão de ser o guardião da vida. A naturalização das mortes fortalece a cultura de violência que vem se firmando no país, mostrando uma desconsideração à realidade cruel que nos atemoriza. Festejar a morte é procurar interagir morbidamente com uma plateia sedenta de hostilidades e de exacerbação dos ânimos. Assim se contribui para que se instale um mundo paralelo, conflagrado, fermentando cada vez mais o espirito de beligerância entre os brasileiros. É preciso que saiamos desse processo esquizofrênico de potencialização das crises. O momento exige serenidade de todos, a partir dos governantes, no sentido de que se restabeleça entre nós um ambiente de paz e solidariedade fraterna nos instantes catastróficos a que estamos sendo submetidos pela pandemia do coronavírus. 

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