A cidade desumana

O andar lento e indeciso caminha na direção de algum lugar. O apoio de uma bengala pausadamente manipulada por mãos trêmulas e imprecisas tenta traçar caminhos e rotas por entre calçadas irregulares, construídas apenas para deleite de seus proprietários, com rampas desproporcionais, pisos inadequados e derrapantes, degraus limitadores de mobilidade.

Em alguns momentos a bengala rodopia em movimentos circulares como a buscar equilíbrio em espaços imagináveis, porém, inatingíveis por sua absoluta ausência. E o andar segue lento e indeciso, esbarrando, com assiduidade, em paredes avançadas sobre calçadas, privatizadas em extensões de garagem ou, mesmo, em desejos de seus proprietários que, a revelia e com a conivência da omissão pública, inverte o público e coletivo em domínio privado.

O caminhar segue até o obstáculo seguinte que, impossível de ser transporto pelo esforço humano natural, obriga o caminhante a deslocar-se para o leito da rua. Buzinas e gritos apressados de motoristas anônimos invisibilizam o caminhante ante a pressa de chegar ao destino, mesmo alheio aos passos de tantos, entre malabarismos e esforços para conseguir apenas e tão somente exercer o natural gesto de caminhar.

Os passos seguem até a interrupção pela ausência de calçadas, consumidas pelo avanço de capins e pequenos arbustos que se espraiam para além do terreno baldio. O leito da rua volta a ser a opção de caminho. Um motoboy acelera a buzina para espantar o caminhante e conseguir cumprir as metas das entregas de delivery, o que transforma, em sucessivos momentos, nossas ruas e avenidas em verdadeiras pistas de ralis, onde semáforos são desrespeitados, regras de trânsito são negligenciadas e pedestres e automóveis são espremidos entre zigue zagues e acrobacias tantas de motoqueiros abusados e apressados na perseguição do cumprimento de metas e cronogramas.

O caminhante ganha a parceria de uma jovem senhora com o filho bebe no colo e, a tiracolo, uma pesada mochila com mamadeiras, fraldas e outros apetrechos necessários ao dia do filho no seu trabalho de empregada doméstica. Mais uma vez os elevados e irregulares desníveis entre as calçadas forçam os parceiros de caminhada a procurar o leito da rua. Esgueirando-se entre avexados automóveis e motoqueiros velozes caminham amedrontados e temerosos pela própria vida.

Retomam o caminhar pela calçada a frente, mas, novamente, barracas e balcões transformam pedaços de calçadas em lojas e extensões de negócio, para o comércio de frutas, verduras, sandálias e confecções baratas. A opção, mais uma vez, é voltar ao leito da rua e dividir a vida com carros e motos avexados para chegar aos seus destinos.

Assisto ao movimento e me assola uma dolorosa constatação: a cidade não é lugar para pessoas. Ou melhor: a cidade, ao não cuidar das pessoas, se transforma apenas e somente em um lugar qualquer, onde a vida vale e é auferida apenas e tão somente pelo nível do poder que aciona buzinas, pedais, aceleradores, barracas, balcões, calçadas bem construídas, mas totalmente desprovidas de sua função. Jamais, pelo andar cambaleante de cansadas pernas de velhice apoiadas em bengalas tateantes, ou de crianças de colo em braços de mães operárias.

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