A caixa amarela com o laço vermelho

Presente que é presente esboça a nudez da alma, mesmo limitado ao “muito obrigada” habitual. Nesse caso, não há como não gostar da cor, do formato, da estrutura, da finalidade do que se ganha.

Os presentes despertam a surpresa que deveria ser carregada todos os dias, nas costas, nos olhos, nas mãos. São acasos gratificantes, como quase sempre. Mas como presentear todos os dias? Como surpreender sempre?

Presentes são como fendas sobre um ato de por acaso. E, por acaso, é que existe o presente. As fendas vão se assumindo para grandes dias de surpresa, e se encontram com outras atitudes. A surpresa, então, faz-se flecha, acerta o tino, perfura o tímpano dos que se acham espertos. Pois presente verdadeiro é anti-esperteza. É a vitória, quando o receptor estiver são e menos salvo.

Presentes são pontes, coberturas das mesmas fendas, que foram construídas sem receita. Presente que é presente não pode ser comprado ou escolhido com taxas, com armadilhas, com a fuga da resposta, com a chave da pergunta. Sim, porque a alma é a chave. E as pontes se desfazem, caso o presente seja datado, armazenado, previsto, explicado, nitidamente trocado.

Se o acaso não incomodar a situação, o presente deixa de se iluminar como surpresa: torna-se óbvio, tão óbvio e frio quanto o que existe dentro de um pote de iogurte natural.

O presente, para ser surpreendente, deve ser ofertado sem data, sem créditos, sem espera, sem ofícios. O presente, para abocanhar o dono, deve ser ofertado sem vínculos, sem intermédios, sem lances, sem a troca de favores. A alma interfere, justamente, na hora da escolha, da compra, da entrega. E também interfere no outro lado: na hora do impulso, da recepção, da interpretação.

Para presentear com a alma, é preciso estar disposto ao bem, ao sorriso do outro, ao sumo do afeto, à sorte que se estende como um gramado.

O verdadeiro presente, sem arestas, sem motivos lógicos, sem valores materiais, é a alma caprichando no arranjo, no laço, na obra da caixa. O verdadeiro presente, mesmo inadequado para a embalagem, mesmo líquido, mesmo aromático, está dentro da caixa que surpreende.

Os verdadeiros são menos exigentes, são mais baratos, são promocionais espiritualmente, são simples. Não precisam de dourado, de etiqueta, de rótulo, de grife, de comercial, de novela, da caixa amarela com o laço vermelho. Presentes verdadeiros querem beijo, semblante, claridade. São as mesmas fendas que se abrem para outras, que se encontram com a surpresa. Com a surpresa sincera.

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