A borboleta

Sábado à noite. Estava eu concentrado antes de dormir na leitura de um livro, os olhos fixos em uma página delirante, e, de repente, o campo de visão da direita é desviado para o tampo da escrivaninha. Um vulto desconcentrou-me. Era uma borboleta. Diria mais: era uma borboletra.

Ficou ela imóvel em estado de concentração como eu estava antes de seu pouso. Ficou absorta como é próprio dos animais. Sim, sei, os animais não pensam. Mas esta borboleta é minha, pelo menos por enquanto, como é próprio do ser humano se achar superior aos animais só porque pensa. Então posso colocá-la como pensante.

Aproximei meu rosto dela. Nenhuma reação. Soprei levemente. Ela abriu e fechou as asas despreocupadamente, mas não voou. Voltei à leitura do livro. Não era uma borbolixo. Não existe borbolixo. Todas borboletas são deslumbrantes. 

Se ler é uma viagem, diz o senso comum, então eu, como a borboleta, ganho asas e voo na imaginação desse texto.

Fui dormir e a borbolivro ficou lá.

Agora era domingo. Retornei à minha borboblioteca e a borbolivre continuava no mesmo lugar. Imóvel. Até pensei que estaria morta. Ficaria eu em borboluto?

Provoquei-a novamente com um suave peteleco de dedos e a borboluxo ganhou o espaço livre de minha borboblioteca. Com os dedos indicador e médio em V dirigidos aos meus olhos falei no meu pensamento: “Estou de olho em você! ” 

Era por volta de meio-dia. Já estava eu em ritmo de borbolitro de cerveja. Em voo liberto ela pousou na lombada de um dos quase mil livros de minha borboblioteca. Fui ver qual obra escolhera para dar asas à sua imaginação.

Antes fui à geladeira buscar mais uma borbolata de cerveja.

Não creio em predestinação, mas reafirmo que a leitura realmente dá asas à imaginação. Pois não é que ela baixou o santo no exemplar A Borboleta Amarela, de Rubem Braga! Incrível sua identificação com o mestre da crônica.

Por que não aterrissou em um dos três tomos de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, já que estava ali meio zonza sem destino, suponho. Por que não foi em Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez ou em Catatau, de Paulo Leminsk?

Depois de várias borbolatas almocei e fiz a sesta. 

Acordei curioso e, mal abri os olhos, corri para ver se a borboleitora ainda estava com Rubem Braga. Arregalei os olhos. Ela não estava e nem o livro.

Acho que exagerei nas borbolatas de cevada.

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