Por conta do cão

VALIOMAR ROLIM

O linguajar, grande manancial cultural de um povo, é a herança de acontecimentos históricos, obras literárias, fenômenos naturais e, naturalmente, das histórias (ou estórias?) que, com o tempo, vão perdendo corpo, ficando apenas o chavão. Muitas e muitas expressões de nossa linguagem surgiram das façanhas desses heróis às avessas que juntos fazem o mosaico que é a cultura popular brasileira.

Cajazeiras vivia o fim da década de trinta, a cidade era seu próprio universo. Contato com o resto do mundo só através de caixeiros viajantes, telégrafo e algumas das maravilhas tecnológicas da época como o rádio e o automóvel. Carros de praça, como eram chamados os táxis à época, só existiam dois, um era dirigido por Deodato e o outro por Euclides.

Major Pereira, grande comerciante daqueles tempos, uma noite por semana fazia uma corrida com Deodato, saindo em torno das dezenove horas e retornando duas horas depois. Vendo o grande cliente em potencial, Euclides passou a cortejar o Major que resistia às mais tentadoras propostas e mantinha-se fiel a sua antiga parceria. Foram tantas investidas que terminaram aborrecendo ao Major Temóteo.

A fidelidade canina do Major a Deodato começou a despertar suspeitas. Euclides matutava, perguntava-se o que poderia existir no bojo daquelas incursões noturnas? Alguma coisa de muito importante fazia com que Deodato rejeitasse boas corridas para esperar pelo Major. Tanto pensou, tanta fantasia criou, que, para não ficar louco, resolveu seguí-los numa daquelas jornadas.

A decisão estava tomada. Cada saída dos dois que, para Euclides, tornaram-se sócios num grande mistério, era uma tortura mental. Uma noite, não mais resistiu, mandou aos diabos a prudência, e, finalmente, seguiu aqueles que, para ele, configuravam-se em verdadeiros bruxos com os diabos nos couros.

Saíram os dois, e Euclides na cola, deram umas voltas pela cidade, diminuíram a marcha, aumentaram a marcha, e, por fim, dirigiram-se a uma determinada rua onde o carro parou e entrou um vulto feminino, daí rumaram a antiga estrada de Jatobá, onde o automóvel estacionou, o par desceu e afastou-se do veículo. Euclides ficou à espreita. Em determinado momento, quando achou que via alguma coisa, acendeu os faróis do carro e assustou o casal. Chamou-lhe atenção a bunda da mulher que, de tão branca e roliça só podia ser de gente rica.

O Major rapidamente alcançou Euclides e pressionou o revólver contra a cabeça do curioso que, chorando, pediu mil perdões, disse que era um pai de família procurando ganhar mais algum para os seus. O Major amoleceu e, depois de proferir as maiores ameaças que poderia, liberou Euclides, deu-lhe uma boa soma em dinheiro para que, se o medo não fosse o bastante, a boa vontade o fizesse silenciar.

Tremendo feito vara verde Euclides voltou à cidade e, para calibrar os nervos, passou pelo cabaré de roxinha afim de tomar um oito de cachaça. Ao entrar notaram-lhe o nervosismo. Arrepiado, olhos esbugalhados e dilatados,  pele lívida e o suor tomava-lhe o corpo. Estava tão atônito que os presentes  o levaram na galhofa. Só podia ter visto alma. Não, foi o demo, o próprio diabo em pessoa. Todos ficaram convencidos Euclides vira o cão! Procurando disfarçar ofereceu uma rodada a todos, a cisma aumentou. Diante de tantas perguntas sobre  a origem daquele dinheiro e por conta de quem se estava bebendo, só coube a Euclides responder:

– Por conta do cão.

VALIOMAR ROLIM, MÉDICO E EMPRESÁRIO DE CAJAZEIRAS

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