Alma fajuta

VALIOMAR ROLIM

Os que conviviam com ele, sabiam que nele caberia como uma luva o conceito de boa vida. Filho do proprietário rural de maior patrimônio e influência das redondezas. Louro, olhos azuis, jovem, belo e forte, Luís Augusto fora aquinhoado com atributos que a maioria luta toda uma vida para nunca conseguir. Estudar? Freqüentava as aulas no grupo escolar da Serra da Arara, onde prestava muito mais atenção nas pernas da professora Creuza do que no assunto das aulas. Trabalhar? Ocupava-se em afazeres pela fazenda, sobretudo aqueles mais excitantes, sobretudo campear uma boa rês e, principalmente, se essa fosse das de cabelo longo.

Dos compromissos agendados daquela figura, destacava-se agora a visita noturna aos arredores da casa do novo morador da propriedade. Que dureza! Esperar que todos dormissem e dirigir-se à casa de Seu Pedro de Sousa, jogar uma pequena pedra no telhado, mirando o lugar que Corina dormia e esperar. Estava garantida uma noitada de fazer inveja a soberanos.

Corina, filha do novo morador, era tudo que corpos e mentes jovens poderiam desejar. Sua pele queimada pelo sol do sertão fazia um divino contraste com os olhos verdes, incrustados num rosto emoldurado por cabelos lisos e castanhos claros que, naquele corpo, torneado pela natureza, sugeria que algum Deus o planejou cometer seu pecado capital. Era o mais puro fenótipo da herança ibérica que tanta beleza e sensualidade conferem às nossas morenas.

Entendendo e atendendo àquele chamado, Corina pulava a janela e, junto com Luís, ia à capoeira entregar-se à volúpia, ao desfrute, ao deleite. A lua, tudo testemunhava e, com sua luz suave e prateada, iluminava aqueles momentos de êxtase e de puro alumbramento. Corpos jovens, viçosos, hígidos, sadios, enroscados se penetrando, se misturando, como se fora uma peleja entre contendores que tentassem superar-se nas carícias. O instinto animal de perpetuação da espécie era ofuscado pela poesia exarada pela beleza dos corpos juvenis, numa cadência que se consubstanciava no mais belo balé que coreógrafo nenhum jamais conseguiu criar.

O dia mostrava seus primeiros clarões e a barra já clareava, chegava a hora de fazer um hiato naquela conjunção carnal. Luís, ainda no repouso do guerreiro, realçando sua índole de jovem pouco afeito aos esforços, deu um longo beijo no monumento ao pecado que era Corina e, sem vestir uma única peça de roupa, dirigiu-se à cerca que fazia limite entre aquela gigantesca alcova de teto estrelado, dádiva da obra do criador, e a estrada que dava acesso à casa grande da fazenda.

Os dois vinham pela estrada depois de uma noite na jogatina. No remorso comum de jogadores arrependidos faziam as costumeiras juras de nunca mais jogar. Sentiam-se pecaminosos e, no condicionamento castrador da religiosidade sertaneja, aguardavam como certo um castigo para breve, quando um deles chama atenção do outro para aquela criatura que pulara a cerca e caminhava pela estrada. Que seria aquilo? Seria deste mundo? O que estaria fazendo àquela hora naqueles fins de mundo? Não poderia ser humano. Teria de ser uma alma. Reparando na brancura da bunda de Luís Augusto, o mais assustado concluiu:

– É uma “aima” e tem o cu branco!

Luís sentiu na confusão dos medrosos a oportunidade que esperava para afastar os curiosos da estrada, para mantê-la para si como o único na noite. Deu-se a fazer caretas e a emitir gritos para dar mais realismo a assombração vista pelos tementes pecadores que, diante daquela visagem desinibida, fugiram em disparada.

Dia seguinte, a Serra da Arara era um assunto só: a alma do cu branco. Varias pessoas davam conta da visão de uma alma de tamanho descomunal, alta, olhos de fogo incandescente, forte, com mãos grandes e garras se lobo guará. Havia descrições para todos os gostos, algumas totalmente diversas da maioria, mas, numa coisa todos concordavam, a alma tinha o cu branco.

A partir deste episódio evitam-se passeios noturnos por aquelas paragens. Apesar dos anos que nos separam daquela noite, a alma do cu branco ainda é referida por homens, mulheres e meninos. É invocada pelas mulheres querendo manter os filhos, maridos e outras pessoas em casa, pelos preguiçosos como desculpas para evitar tarefas externas noturnas, pelas namoradas querendo manter os amados por mais uns instantes e, para e por todos os fins possíveis, o imaginário popular mantém viva e presente nossa velha conhecida.

Felizes eram Luís e Corina. Hoje, com luz elétrica nas localidades rurais, não aparecem mais almas.

VALIOMAR ROLIM NO LIVRO ‘O CRONISTA DO BOATO’

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