Uma estrela chamada Marcélia Cartaxo: cajazeirense foi a primeira atriz brasileira a ganhar o Urso de Prata em Berlim

Essa é a história de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente. A história não é isso só, não. É de uma inocência pisada, de uma miséria anônima. Foi assim que Clarice Lispector (1920-1977) definiu poucos meses antes de sua morte, em uma de suas raras entrevistas, a novela que acabara de concluir: A Hora da Estrela. Foram oito anos até que essa história chegasse aos cinemas para se tornar um dos marcos de um período transitório do cinema nacional, que assistia ao fim do sucesso das pornochanchadas e a derrocada da Embrafilme, mas que paralelamente via surgir diretores dispostos a realizar obras mais autorais. Esse era o caso da paulista Suzana Amaral (1932-2020). Ela conseguiu algo raro em seu primeiro filme: sucesso internacional de crítica e de público, ao que muito se deve a uma interpretação arrebatadora de Marcélia Cartaxo, paraibana de Cajazeiras.

Passados 38 anos da estreia, a mostra A Cinemateca é Brasileira reapresenta o longa, de forma gratuita, no domingo (dia 5), às 17h30. Uma oportunidade de Marcélia revisitar os acontecimentos que mudaram para sempre a sua carreira quando seu caminho cruzou o de Suzana Amaral. “Aconteceu um milagre ali. Todo mundo estava indo fazer vestibular em João Pessoa e eu ficava olhando para o teto imaginando o que ia ser”, relembra a atriz, que, aos 12 anos, fundou o grupo Mickey e se apresentava nos quintais e ruas de Cajazeiras. O grupo se profissionalizou, passou a se chamar Terra e, com a premiada peça Beiço de Estrada, de Eliézer Rolim (1961-2022), chegou até São Paulo através do projeto Mambembão.

Na capital paulista, Suzana procurava uma atriz nordestina que fosse desconhecida pelo grande público para interpretar Macabéa. Da plateia, viu Marcélia brilhar e passou a cercar a paraibana, dando-lhe um exemplar do livro de Clarice e pegando seu endereço para que ambas permanecessem em contato quando a trupe voltasse à Paraíba. Foram oito meses e oito cartas trocadas, em registros que se perderam na umidade e no tempo. “Ela me dirigia o tempo todo e falava muito sobre a Macabéa. Que era uma menina muito pacata, vinda do interior e muito solitária”, conta Marcélia. Na oitava e última correspondência viria também uma passagem de ida para São Paulo e uma recomendação. “Ela me pediu para fazer uma camisola de saco de açúcar, dessas feitas de algodão, para costurar e ficar usando até que ela ficasse bem suja”.

Ao chegar a São Paulo, Marcélia considerava que o papel já estava garantido, mas para sua surpresa, ela ainda foi submetida a testes de elenco devido à pressão dos produtores, inseguros pela inexperiência da protagonista. Durante todo o período de testes e gravações, Marcélia era mantida isolada. “Suzana não queria que eu ficasse deslumbrada. Ela me pegava no carro dela às quatro da manhã, e eu ia para o set com ela. Quando chegava na locação, ela me colocava sentada em uma cadeira que ficava o tempo todo voltada para a parede para ninguém vir me desconcentrar”. Foram 28 dias de filmagens sob a pressão de que todas as cenas dessem certo devido ao uso controlado das caras películas em 35mm.

Assim como Clarice e Marcélia, Macabéa era uma migrante nordestina em uma grande cidade. A personagem vive em um cortiço e é explorada no trabalho. “Sou datilógrafa e virgem, e gosto de Coca-Cola”, diz ela no filme. Macabéa só ouvia o rádio-relógio, que pingava os minutos enquanto dava informações de cultura inútil. Por ter vergonha ou por se achar feia, ela nunca se viu nua e era humilhada pelo seu único pretendente, o também nordestino Olímpio, com quem ela tem diálogos impossíveis que dão a dimensão da invisibilidade e do vazio existencial de ambos. Cartaxo carrega para a personagem uma estranheza que causa um constrangimento contínuo e parece fora da realidade. Mesmo assim, nada é mais verossímil que Macabéa, um tipo humano que a atriz paraibana torna apaixonante. Um processo que nem sempre ficou claro para Marcélia.

“Suzana estava me colocando à prova o tempo todo. Às vezes eu não entendia, mas às vezes eu entendia. Ela me dizia: ‘Um dia você vai me agradecer’”, conta a atriz. Amaral havia retornado cheia de novas ideias ao Brasil depois de fazer uma pós-graduação em direção na Universidade de Nova Iorque (EUA). Uma das técnicas que a diretora havia decidido implementar era impedir que o elenco decorasse o texto, motivo pelo qual ela só deu o roteiro poucos dias antes do elenco entrar no set. O que a cineasta queria era captar o silêncio, do qual o filme é repleto. O que importava não eram as palavras, mas o que estaria por trás delas. Em uma obra sobre a incomunicabilidade e a dificuldade de lidar com os códigos sociais, ninguém soube transmitir isso melhor que Marcélia Cartaxo.

Mas, para ela, isso não ficou claro em nenhum momento durante as filmagens. “Suzana me levou na montagem porque eu tive que dublar o filme todo. Às vezes, ela comentava: ‘Ah, quem vai gostar desse filme? Só tem pessoas feias, ninguém interessante’. Isso, claro, que toca na gente”. A impressão de que a película seria um sucesso só veio quando A Hora da Estrela foi ovacionado no Festival de Brasília, levando todos os principais prêmios, incluindo Melhor Filme, Direção, Roteiro e Atriz. Uma trajetória que ganhou ares míticos e fabulescos ao fazer da menina pobre do Sertão paraibano a primeira atriz brasileira a ganhar o Urso de Prata no prestigiado Festival de Berlim. Esse dia, porém, ficaria marcado por um caso de violência.

No dia de exibição do filme na Alemanha, as expectativas estavam altas. Toda a equipe presente pegou um ônibus público a caminho do cinema. Marcélia se sentou nas últimas poltronas, distante um pouco de Suzana Amaral. “Nesse momento, entrou um senhor atrás de mim todo arrumado e começou a me socar, me chutar e me empurrar. Eu só me afastava, mas um momento eu comecei a chorar e gritei por Suzana”. Quando o ônibus parou, a cineasta foi atrás de saber o que havia acontecido e entendeu que Marcélia havia sido confundida com uma judia. Ser Judia era como ser uma Macabéa na Alemanha. “Hoje, eu tenho medo de ir para lugares muito diferentes”. Contudo, a lembrança do momento que ergueu o troféu é o que ainda se impõe. “Eu me derretia. Senti o peso da responsabilidade e liguei para a minha mãe. ‘Mãe, ganhei o Urso’, e ela me dizia: ‘Não traga esse bicho para cá porque não tem comida para ele, não’”, relembra ela, aos risos.

O nome A Hora da Estrela refere-se ao momento da morte de Macabéa no livro de Clarice. Mas Marcélia Cartaxo transformou o título em seu momento de maior brilho, que foi ficando bruxuleante por muito tempo e só devolveu à atriz o reconhecimento devido com Madame Satã, em 2002. “Esse reconhecimento me trouxe muitos desafios. Como eu cheguei ali, era preciso chegar de novo e ir além. Mas nisso eu fui quebrando muito a cara, ficando na casa de amigos e fazendo pequenas participações aqui e ali”. Marcélia reconquistou grandes papéis e hoje mantém em sua estante mais dois Kikitos de Ouro por sua performance em Pacarrete (2019) e A mãe (2022). Aos 60 anos recém-completados, Cartaxo está completamente reintegrada às produções audiovisuais em séries e novelas, tendo se tornado também diretora de quatro curtas metragens, para onde leva a cartilha aprendida com Suzana Amaral.

“Encontrei Macabéa em mim mesma. É um pouco de mim também. Agora, é importante que as novas gerações vejam A Hora da Estrela, principalmente para as mulheres. Ele passa uma mensagem muito profunda de como a vida é cruel realmente”. Com um estilo naturalista e muito próprio de atuação, Marcélia foi por muito tempo confundida com a sua personagem. Mas como dizia Suzana Amaral, é que somos todos um pouco Macabéa também.

COM INFORMAÇÕES DO JORNAL A UNIÃO

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