Um ensopado divino

O galinheiro grande da casa de Vozinha era esplêndido. Arquitetura resistente. Peça importante na organização do quintal. Eu vivia planejando entrar lá, mas a vigilância era rigorosa. Evitando problemas com reclamações compridas ou carões que pediam público, eu esperava o dia da lavagem do local. Ficava por perto, brincando nas gramíneas. Tentava ficar quieta. Eu e minhas bonecas, na espreita, gastávamos o tempo colhendo buquês de onze-horas.  

Depois que todos os recantos e poleiros fossem devidamente higienizados, eu estava autorizada a entrar, aos cuidados de algum adulto. Uns cinco minutos. Tempo suficiente pra outra atmosfera, qualquer situação que me levasse a uma brincadeira. Que alegria. Em certos momentos mágicos, a construção de caibros e ripas se transformava num suntuoso castelo, num perigoso calabouço, numa moderna nave espacial, numa sortida quitanda.   

As aves eram alimentadas, reproduzidas, preparadas, monitoradas. Seriam, em breve, integrantes do menu. Parece que o cacarejo previa o espetáculo. Esse filme não se passava somente com galinhas; galos, frangos, capotes ou capões chegavam por ali, vez em quando. Patos, primos de patos ou parecidos com patos, não vi. Perus ou codornas, não lembro.

As pequenas criaturas, quando compradas na feira, eram da mais alta e fiel procedência. Confiança de peso. Vovô sabia quem era o feirante, onde o cidadão morava, qual o laço familiar, que religião seguia e, sem exagero, até em quem votava. Meu sangue de reportagem vem de longe. Caso o bichinho fosse um presente, mais ainda era respeitado na cozinha. Cansei de ver algumas visitas chegando, agitando o ambiente, portando num saco o animal de penas desconfiado.

Observar o tratamento das aves para o almoço exigia de mim um tanto de disciplina. Eu tinha que observar, sem chilique, sem mexer nos apetrechos e sem desconcentrar a cozinheira, minha linda avó, desde cedo reclamando dos gatos invasores. Os felinos sentiam o cheiro da operação-abate, acompanhavam o movimento e vigiavam as pelancas descartadas. Saltavam, miavam, rosnavam, arrumavam encrenca. Os gatos mais malandros, claro, eram os mais agraciados. Quer dizer, não era bem uma graça que obtinham, mas a vitória da astúcia durante a disputa das sobras de gordura. Os malandros mais descarados, típicos da vida solta na malandragem, conseguiam comida e, ainda, escorraçavam os colegas. Nem a gosma do esqueleto era tocada pelos concorrentes.      

Como minha missão era apenas observar, eu colecionava essas cenas que aconteciam durante o processo, que começava de manhãzinha. Um largo tacho de barro sobre uma armação de ferro era a máquina de trabalho. A finada ave, a essa altura, sem identidade, crista, papo, bico e cabeça, era mergulhada numa espécie de piscina superaquecida. Limpeza total. Limão e vinagre auxiliavam. Quando o estômago da coisa era aberto, eu pedia logo as gemas em formação. Minha obediência dava certo.

Depois de um longo período de tempero e cozimento, nunca por pressão, o mais natural possível e no fogo baixo, nascia um ensopado divino. Aquele líquido no fundo da panela era um poderoso ingrediente da farofa de cuscuz. Arroz branco bem-cozido e feijão gordo vermelho não faltavam. Sim, e jerimum caboclo, com casca.

Na cabeceira da mesa, estava a nossa heroína, um pouco cansada, talvez com um leve interesse em degustar uns fiapos do peito da iguaria. Quase vegana, sentia repulsa por carnes, mas cumpria com amor a missão em favor dos participantes. Após o banquete, um cochilo era um exercício complementar. Calor habitual, bucho cheio e paz na consciência. Tranquilidade. Não era horário pra muriçocas. Relógio desligado. Tudo isso até que alguém rasgasse aquele misterioso silêncio do vale. Ô de casa.     

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