Tristeza de louça

Em um canto de calçada ela espicha o olhar como a buscar vestígios e desejos de burburinhos e movimentos que, em tempos idos, agitavam o trecho da feira livre dedicada a venda de panelas, potes e outros apetrechos caprichosamente esculpidos pelas mãos das hábeis louceiras e que passavam a compor parte necessária de todas as casas, das mais abastadas as mais singelas.

Panelas, cacos e tachos onde eram preparados o famoso rubacão com toucinho frito, avidamente consumido. Potes que, suspensos em cantareiras, armazenavam a água conservada em temperatura amena e, em incontáveis momentos, saciando a sede de tantos. Potes diligentemente protegidos por caprichosos panos bordados e marcados por mãos femininas que imprimiam marcas e tons e trazia alegria e cuidado a tantas casas de taipas e rusticamente improvisadas de moradia.

Em minha infância e adolescência por inúmeras vezes acompanhei minha mãe nas visitas as louceiras como Dona Glória e Francisca de Paulo. Além de analisar o estoque na busca de algumas peças para repor aquelas que apresentavam rachaduras ou desgaste pelo tempo de uso, mamãe sempre encomendava algumas novas, em especial, destacando-se a panela para o feitio do feijão, o caco para torrar a farinha de milho e um grande tacho. Tacho esse onde ela, aproveitando vísceras e outros pedaços dos porcos que eram abatidos, com parte para consumo doméstico e outra para venda como estratégia de complementar a renda, misturava com potassa e, após dias de curtida, era levado ao fogo em uma trempe improvisada no terreiro, preparando um natural, saudável e cheiroso sabão caseiro. Sabão que exalava um cheiro de carinho ao ser soprado em ventos brandos que tangiam as roupas no quaradouro.

E a louceira, solitária em sua aventura de manter pulsante uma cultura que, a cada dia, é ameaçada pela modernidade do plástico, do alumínio, olha para os transeuntes que, indiferentes, viram as costas como a temer o contágio do “atraso”. E, entre panelas, pequenos jarros, potes ela atualiza seu fazer produzindo peças que reproduzem animais, flores, apetrechos que são tranquilamente indicados como decorativos.

E a louceira, em sua solidão, devaneia e vislumbra tantas outras companheiras dos sábados de feira livre em Cajazeiras, e com ela dividia o espaço da venda, mas também as prosas, as esperanças de melhores negócios. Mas, uma apressada buzina de carro lhe traz a realidade. Ela está sozinha como se andasse de costas na direção do ontem.

Que pena ver a solidão da louceira e, mais triste, ver esvaindo-se uma cultura tão entranhada em nossas vivências e que, se apoiada, poderá render ensinamentos para tantas gerações mais novas. Gerações mergulhadas em mundos digitais e virtuais, mas que não pode deixar de vivenciar o prazer de preparar um feijão de corda, cozido em panela de barro no fogão de lenha, temperado com toucinho, nata e coentro, e deliciado com arroz e costelas de porcos, fritas em um tacho de barro.

Isso será possível? Ou apenas me deixei contaminar pela tristeza solitária da derradeira louceira expondo seu trabalho na feira livre da cidade.

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