Um Pix, pelo amor de Deus

Era uma sexta-feira. Saí do trabalho doido para chegar em casa e beber cerveja. Bares, numa pandemia dessas? Nem com reza braba. Dei carona a um amigo até a rodoviária.

No semáforo em frente ao Museu do Índio um rapaz jovem, vendedor de amendoim, distribuía saquinhos nos retrovisores dos carros e recolhia-os correndo para fazer o apurado antes de abrir o farol. Não deu tempo ele alcançar meu carro.

Na Torre de Tv parei quase na linha da faixa de solo ao se fechar o semáforo. Um rapaz de uns vinte e cinco anos, mais ou menos, correndo, como lhe é costume correr para sobreviver, coloca um saquinho de amendoim no retrovisor de meu carro. Enquanto ele distribui pelos outros automóveis vejo em minha carteira se tenho dinheiro. Nada. Meu amigo também olha na dele. Nada. Sempre dou os trocados que tenho.

Pelo o tempo, acredito que o semáforo estava para abrir e fazer com que ele corra mais e mais, canse e clame por ajuda de dois reais por um saquinho de amendoim para nós que estamos no conforto de nossos carros ouvindo música.

O semáforo vai abrir. Não tenho dinheiro. Ele vai recolher o amendoim. Estou indo para casa beber cerveja. Fim de expediente. Vou para casa descansar. Ele vai continuar a se cansar, correr, trançar de um lado para outro entre carros com risco de vida. Com certeza vai ajudar sua família.

Em questão de segundos minha cabeça traça o perfil dele se tivesse tido condições de estudar. Não sei porque, mas vi sua feição como professor universitário de computação. Ou seria médico cardiologista? Matemático?…

Ele já sabe o tempo de abertura do semáforo e retorna apressado para o início da faixa no asfalto para recolher possíveis trocados para seu sustento. Sua expectativa é apenas de que paguemos dois reais pelo amendoim. Está chegando minha vez. Seu esforço merece ser recompensado. Nem uma moedinha sequer tenho. Estou indo para casa beber cerveja. Minha consciência está pesada. A imagem dele cresce em meu campo de visão. Seu braço está quase esticando em minha direção. Lembro da música de Gonzaguinha: “… e doutor, uma esmola a um pobre que é são. Ou lhe mata a vergonha, ou vicia o cidadão”. Esse cenário é a imagem dos semáforos das grandes cidades. É o país esmoler. A cerveja em casa me espera. Minha esposa e minha filha, me esperam.

Não tem jeito. Vou ficar devendo essa. Ele chegou no meu carro. Sua mão recolhe o amendoim e, quando começa a se dirigir para o cliente atrás de meu carro, eu grito: oi, você tem Pix? Ele responde na bucha: tenho! E rapidamente abre a pochete presa na cintura, onde guarda o dinheiro recolhido, e saca um cartãozinho da propaganda do amendoim com seu CPF já escrito à mão no verso. Grito novamente: quando chegar em casa vou transferir dez reais! Ele quis deixar o amendoim pra mim, demonstrando confiança, e eu disse que não precisava. Se eu não deposito, ele perderá dois reais. Pra mim é pouco, mas pra ele é uma fortuna. Senão ele não estaria arriscando a vida no meio dos carros.

O fato dele falar que tinha Pix, mudou todo cenário. Eu e meu colega caímos na gargalhada pela surpresa e sua esperteza. O semáforo abriu e partimos.

Em casa narrei o fato para minha esposa. Ela falou pra depositar mais dez para ele. Fiz a transação com vinte reais. Deu tudo certo.

Se antes eu praticamente não usava dinheiro em espécie, por causa do uso do cartão para todas transações financeiras, com o advento do Pix agora não vou usar nem mesmo o próprio cartão. Faço tudo pelo aplicativo no celular. Pra quem me pedir esmola ou ajuda na rua, vou logo perguntando se tem Pix. Isto se o pedinte não fornecer antes para eu fazer o depósito.

Pelo visto a tendência será ouvirmos: me dê uma ajuda pelo Pix, pelo o amor de Deus!

Há poucos dias repeti o mesmo esquema com uma flanelinha de um estacionamento comercial com mais dez pilas. É a nova modalidade de ajuda, por meio digital.

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