Sorvete de ameixa

Minha capacidade de perdoar é indiscreta. Grita feito louca, corre nua em pleno dia de feira, vai se lambuzando de purpurina e sempre exagera nas plumas. É um escândalo.

Meu senso de perdoabilidade é convexo, saliente, porque é vulcão e espalha as suas brasas gigantes nas sombras das pessoas mais próximas. Aquela lava de demência vai descendo e queimando o que encontrar. Às vezes, o senso é uma bolha: inflado e doloroso.

Perdoar, para mim, é como saber o resultado de dois e dois, a conta simples que aparece com o trabalho dos meus reflexos alfabetizados. Minha perdoabilidade é tão impulsiva que eu penso em fazer o contrário. Penso na maldade, penso em destruir as situações de paz, penso na traição, penso na coisa sanguinária e homicida. Não tenho coragem. Não há jeito. Minha ruindade é descarada, frouxa, melancólica, e não sabe se safar. Mundo, me ensine a ser pilantra.

Meu perdão é infantil, por isso pulsa, em plena verdade, e vai se diluindo nos fatos, como glicose na veia em dias de ressaca. E o melhor: meu perdão é barato. Se alguém quiser conquistar o meu sorriso de desculpas, basta me levar para tomar um sorvete.

Os sorvetes cremosos me conquistam, os de fruta me desarmam. Tomar um sorvete de ameixa é entrar num paraíso de maciez e açúcar. Ninguém é capaz de me enraivar numa hora dessas. Primeiro, desço por uma cordilheira de plástico e vejo aquela montanha marrom, construída através de receitas simples, adornadas com substâncias químicas. Não quero saber se o sorvete é fabricado com ácidos disfarçados ou com o mais puro veneno. Minha criancice só percebe aquele universo colorido e doce.

Mergulho em cada porção do gelo e viajo nas coberturas tradicionais: chocolate, morango e caramelo. Se um certo creme com passas aparecer por ali, acompanhado de um certo amendoim ou de uma certa castanha, eu me desmancho logo e perdôo o interlocutor por cem anos. Se pintar cereja, com uma caldazinha feliz, eu sou capaz de estabelecer um pacto com os santos mais conhecidos, para proteger o meu ex-adversário.

Naquela dormência do lábio, pode chegar uma nuvem imitando o chantilly ou o chantilly imitando uma nuvem. Não sei, não sei. Fico confusa com a alegria do sorvete. Durante a inquietação da gula, e se surgir um bombom, eu começo a sofrer de amnésia e nem lembro mais o que me levou a perdoar.

Devo reconhecer que um sorvete de ameixa é essencial para passar a minha tristeza diante de qualquer problema. Os psicólogos devem estar dizendo que isso é uma grande fuga. Ai, como é gostoso fugir no sorvete. Se o problema for mais grave, desenvolvendo alguns sentimentos, como fúria ou alienação, um sorvete caprichado com marshmallow resolve. Eu esqueço até que estou fugindo ou perdoando por haver me inflado de raiva. Assim, quero fugir sempre.

Eu gostaria muito de ser vingativa, mas o meu perdão é mole e instantâneo, além de facilitado com uma iguaria de pouco menos de dois reais. Meu perdão é aéreo porque minhas sensações negativas não possuem asas, falsificam o vôo ou são facilmente golpeadas pela pedra do estilingue, recheada até mesmo com essência de baunilha. 

Eu gostaria muito de aprender a ser cruel, oportunista, mentirosa, fria e bruxa. Dos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, eu gostaria de admirar a Cuca. Das vertentes sociais e dos homens habilidosos, eu queria, passivamente, admirar os políticos. Dos sonhos, eu gostaria de alimentar o de não me preocupar em crescer espiritualmente. Das graças, eu gostaria de crer que a mais rica é a sorte.

Preciso ser aluna da esperteza e catequizar o meu perdão abobalhado. Na dúvida, vou mantendo o padrão perdoável e me enchendo de truques para dizer não. A partir de hoje, por exemplo, mesmo para as raivas menores, vou exigir sorvete triplo.

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