Sonhos: quarta parte

As paredes se movimentavam. Não havia qualquer ruído. Estávamos em outro ambiente, com espelhos de diversos formatos. Os hexágonos eram mais visíveis. As paredes se movimentavam. Até então, víamos aquilo tudo como um grande circo. Mas não era algo lúdico somente. Senti que era como se fosse um teste para as nossas aptidões físicas. Cada um de nós entrava num subgrupo de números artísticos. Fiquei com o trapézio. Eu e outras dezenove pessoas. O revezamento era fácil, mas o suporte para o balanço, às vezes, era invisível. A cada minuto, teríamos que fazer o máximo que podíamos. Era um trabalho coletivo e ultramodificado. As paredes se movimentavam. Não podíamos repetir as combinações. Essa matemática era um tanto súbita e ao mesmo tempo emocionante. Não havia lona ou cenário apropriado para um ambiente circense. A música era o silêncio. Como podíamos fazer tudo aquilo em silêncio, não sei explicar. Aliás, não sei explicar a sensação exata ao ver tantas paisagens que se concretizavam e, segundos depois, sumiam. O trapézio era preso num lugar muito alto. Tão alto, mas tão alto, que não conseguíamos ver o ponto. Sei que pegávamos na barra e voávamos em duplas, trios, quartetos e quintetos. Depois, nós, os vinte integrantes do subgrupo, parávamos um pouco para ver os outros. Esse pouco era misterioso: tanto podia ser um milésimo de segundo quanto dez minutos. O tempo no sonho é outro tempo. O tempo no sonho é uma razão diferente, um somatório de perspectivas distante da nossa pequenez humana. Constatei essa minha análise no subgrupo dos acrobatas. Quanta prudência. Quanto equilíbrio. Que tempo concatenado de forma brilhante. As paredes se movimentavam. Eram mais vinte pessoas: todas faziam suas peripécias com objetos diferentes. Bolas, pinos de boliche, rodas de metal. Cada acrobata ia trocando seu objeto com outro participante, até formar um entrelaçado de cores. Tudo na mais significativa organização. Não tínhamos o número de acrobacia com tochas. Fiquei me perguntando se, em outro local, por outro painel de luzes, haveria mais gente fazendo. Seria um belo visual. Não sei se em algum dos túneis que ainda não passamos. Não sei se em algum lago que eu sei que existiam. Não sei. As paredes se movimentavam. Sei que vi a beleza em forma de progressões perfeitas. Bonito também foi assistir aos equilibristas. Eram vinte no subgrupo. Cada participante com sua corda, fazendo a maior concentração do mundo para não cair. Ninguém caía. Ninguém mesmo. Nós do trapézio também não caíamos. Nenhuma vez. Parecia que éramos sempre treinados, mas não consigo me lembrar desses treinos, em que locais e horários treinávamos e quem nos instruía. Nessa espécie de circo não havia animais adestrados. Não havia macaco, elefante, girafa, camelo, pombo. O subgrupo de mágicos talvez fosse o mais preparado. Não sei. Não era ilusionismo ou algo que fosse ensinado em cartilhas de bancas de revista. Era algo mais minucioso, detalhado, rico em surpresas. Nesse caso, não era somente um esforço mental. Apareciam momentos que mexiam com os corpos. Muito mais do que um simples passe de mágica ou truque bem-ensaiado. Outro subgrupo bom de ver: os bailarinos. Como dançavam lindamente. Como paravam e voltavam a se movimentar numa sequência jamais imaginada. Eram vinte pessoas também. Ouvi dizer que estavam treinando um número com os acrobatas. Um deles nos convidou para fazer outro número, outro dia: trapézio e dança. É claro que eu topo. Quero estar nesse lugar mais vezes. Mas não vi o subgrupo dos palhaços. Perguntei, sondei, investiguei. Em nenhum portal vizinho, me falaram. Talvez não tivesse espaço para graça, piada, anedota. Sei que senti falta deles. As paredes se movimentavam.

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